A ESPIRITUALIDADE DA PÁSCOA

15/04/2017 23:59

Quais são os lugares da espiritualidade? Alguns dirão: “Os templos!” que, com sua magnificência e suntuosidade supostamente espelham a glória de Deus. Outros indicarão os lugares sagrados, marcados pela geografia das manifestações de Deus, das sarças ardentes encontradas pelo caminho. E ainda haverá os que defenderão um afastamento do mundo para resguardar a santidade de uma relação com Deus. Mas e quanto a Jesus? Qual sua proposta? Que ambientes Ele escolheu como lugar da espiritualidade, do encontro com Deus?

 

Curiosamente, Jesus não escolheu nenhuma dessas opções anteriores como espaço principal da relação com Deus. Antes, segundo os evangelhos, pouquíssimas vezes Jesus foi ao Templo em Jerusalém ou frequentou sinagogas. E quando apareceu nestes lugares, na maioria das vezes causou problemas, especialmente à elite religiosa de seus dias.

 

Isso porque, para Jesus, o reino de Deus, que é o centro de sua mensagem, não se restringia aos limites dos edifícios religiosos nem era percebido apenas nas manifestações vinculadas a esses locais. O reino não se circunscrevia ao espaço do culto, mas abarcava a integralidade da vida; não se refletia exclusivamente nas liturgias feitas para Deus, mas era vivamente ilustrado no encontro com o outro, sobretudo o outro que sofre pelo caminho. Por isso, como diz Adolphe Gesché, “não se instaura o Reino clamando 'Senhor, Senhor' ou convidando seu irmão que tem frio a encontrar sua oportunidade em algum outro lugar, enquanto se vai serenamente (?) ao culto. (...) Os caminhos da liberdade e da libertação não podem deixar de levar em consideração os meios concretos, reais e históricos."[1]

 

É a vida o lugar de encontro com Deus. E nessa vida, Jesus elege um lugar central à espiritualidade e à relação com Deus e com o próximo: a mesa. É ao redor da mesa que Jesus comunica a todos e todas como é o Deus a quem Ele chama de Pai. Pois a mesa é o lugar da partilha. Quem se senta à mesa divide o pão e a paixão pela vida. Divide os dramas, as crises, mas também as alegrias e prazeres que o cotidiano nos oferece. Quem se senta à mesa, desarma-se para amar. E amar é o caminho para a espiritualidade. "Ame”, afirma novamente Gesché, “seja apaixonado, e então encontrará os caminhos que deve fazer, poderíamos dizer retomando o famoso "Ama et fac quod vis" [Ama e faze o que quiseres] de Agostinho. É preciso reapaixonar o ser humano. Não se parte para a guerra, a não ser para salvar Helena."[2]

 

E o que isso tem a ver com a Páscoa?

 

Muita coisa. Sobretudo quando se percebe a maneira como os evangelhos a descrevem. De tantas narrativas, escolho a apresentada pelo evangelho de Lucas, capítulo 22. Nesta passagem, Jesus pede aos seus discípulos que preparem o lugar para a Páscoa. Quando tudo está pronto, Jesus diz a eles: “Tenho desejado ansiosamente comer convosco essa Páscoa, antes do meu sofrimento.”

 

Eis aí o cerne da Páscoa: à mesa, Jesus reafirma seu desejo de relacionar-se com seus amigos. Paradoxalmente, enquanto em muitas igrejas cristãs a Páscoa é lembrada de forma quase mórbida, com uma ênfase quase exclusiva no sangue e na morte de Jesus, no relato evangélico a Páscoa celebra a vida, mesmo diante da expectativa do mal que haveria de desabar sobre o Filho de Deus. “Tenho desejado ansiosamente comer convosco essa Páscoa”. Jesus deseja proximidade com seus discípulos. À luz de todo o sofrimento e dor que Jesus iria enfrentar dali a pouco, a companhia dos discípulos-amigos era algo muito precioso.


Isso porque partilhar a vida era algo que Jesus amava fazer. Repartir o pão, sentar-se junto à mesma mesa, trocar confidências, tudo isso Jesus gostava de fazer, e, aliás, fazia-o muito bem! Jesus não se revelou um homem taciturno, fechado em si mesmo, seriamente seco em sua relação com as pessoas. Pelo contrário! O Verbo que se fez Carne era capaz de se alegrar com exultação porque aos pobres eram revelados os mistérios do reino de Deus, ou de chorar cheio de compaixão diante de uma Jerusalém fechada à chegada da graça do Pai. Era capaz de conversar com mulheres repudiadas por todos, e de tocar em leprosos jogados na periferia da vida. Era capaz de fazer dos barcos de pescadores um púlpito para as pregações do reino de Deus, ao mesmo tempo em que tornava claras as hipocrisias das elites do Templo. De fato, Jesus viveu plenamente, em todos os momentos, assumindo, até as últimas consequências, sua humanidade.

 

É esta vida de Jesus (e não apenas a sua morte) que é redentora. Ao aproximar-se de gente considerada impura e, no processo, tornar-se um verdadeiro escândalo para os religiosos de plantão, Jesus revelou a salvação de Deus que chegava para todos. “Tua fé te salvou”, diz Ele a uma mulher curada de um fluxo de sangue. “Teus pecados estão perdoados”, afirma Ele a um homem curado de sua paralisia. Ora, isso significa dizer que, para Jesus, o reino de Deus já chegou e, com ele, o plano redentor do Pai a toda sua criação.

 

Esta vida de Jesus não foi bem aceita por todos, especialmente pelas elites religiosas. Como era possível, questionavam estas, que Jesus partilhasse sua vida (e sua mesa) com aquele tipo de gente pecadora? Não percebia Jesus que tipo de pessoa o tocava? Não sabia que os que o seguiam eram prostitutas, cobradores de imposto, ladrões, pobres?! Surge desses questionamentos uma das inúmeras críticas que fizeram a Jesus: “esse aí é comilão, beberrão e amigo de pecadores!”. Crítica, aliás, no caso de Jesus, inteiramente correta: Jesus era (e é!) amigo de pecadores, amigo de gente que não é mais considerado gente pelos outros. Jesus é amigo do pecador.

 

É por isso que a mesa de Jesus está sempre aberta. A todos e a todas! Não existe acepção nem recusa. Basta puxar uma cadeira e sentar-se à mesa para desfrutar do banquete do Pai, da companhia do Filho e da presença do Espírito. Basta aceitar o convite de Jesus: “tenho desejado ansiosamente comer essa Páscoa com vocês!”. Venha! A mesa também é sua!


Nesta ceia descrita pelo evangelho, Jesus reafirma seu desejo de ter comunhão conosco, mas vai até as últimas consequências. Porque nela há a sombra do sofrimento de Jesus. O doce do vinho é ofuscado pela dor da cruz. O prazer da companhia dos discípulos-amigos e discípulas-amigas à mesa é acompanhado da expectativa desesperadora da solidão do Getsêmani. Pois quem disse que o dia do bem também não pode ser dia onde o mal se faz presente? Quem disse que as lágrimas e os sorrisos são inimigos irreconciliáveis? Que noite e dia não fazem parte da vida que é vivida integralmente diante de Deus?


Jesus desejava ardentemente ter aquele último momento de comunhão com seus discípulos. Sabia como seriam as suas próximas horas. Já antevia o sofrimento, as chicotadas, a dor, o desprezo, o sentir-se sozinho. Precisava, portanto, de companhia humana. Quão diferente somos de Jesus! Muitas vezes, nos momentos que mais precisamos, nos fechamos em nós mesmos, incapazes de perceber a presença do outro compartilhando do pão em nossa mesa. Somos solitários, mas por escolha própria.

 

Jesus, não. Ele se aproxima das pessoas porque Ele ama a vida. E, para mim, é este o cerne da Páscoa: a afirmação da vida, e não da morte! Jesus não veio como um suicida louco para morrer. Ele não queria a cruz! Ou você acha que é a toa que ele ora “Pai, afasta de mim este cálice”? Jesus ama a vida! Ama estar com gente, conversar, rir, chorar junto. Basta ler os evangelhos para perceber isso.


Mas nessa ceia, Jesus deixa claro o que está ocorrendo. Ao dar o pão, repartindo-o entre os presentes, ele diz: “Isto é o meu corpo”, e ao fazer isso reafirma sua intenção de entregar toda sua vida por seus amigos e amigas. O bom pastor é aquele que dá sua vida, afinal. Por isso, não é somente a morte de Jesus que tem significado para nós. Não! Não só o seu sangue é redentor, mas toda a vida de Jesus é salvífica. A morte de Jesus, sem ter diante dos olhos a sua vida, sua maneira de ser, de viver e de falar com Deus, fica sem sentido. Jesus não veio para morrer! Ele veio para viver, vida íntegra diante do Pai a quem amou tanto que foi fiel até a morte, e morte de cruz. Pois se a vida de Jesus se resumisse à sua morte, então por que viver? Sigamos o exemplo do Mestre e morramos agora! Mas não! Jesus quer que vivamos a vida como Ele a viveu, vida inteira diante do Pai, vida que se sente e se sabe amada e cuidada porque Deus tem cuidado de passarinhos. O que dizer de nós?


Por tudo isso, afirmo em alto e bom som: sim, eu amo a mensagem da cruz. Mas somente quando ela é lida à luz de toda a vida de Jesus e de sua ressurreição. A cruz, em si mesma, não revela nada a não ser a maldade dos seres humanos, capazes de criá-la e usá-la contra o próximo. A cruz só é símbolo do cristianismo quando e porque associada à pregação de Jesus durante sua vida e à sua ressurreição.

 

Reafirmemos o que diz o evangelho: Deus não enviou seu Filho para julgar o mundo (Jo 3.17) e nem para julgá-lo culpado no lugar do mundo, como se um sacrifício humano – ainda que do próprio Filho – fosse algo agradável ou desejável por Deus. O Senhor não é uma divindade pagã que se compraz com vítimas inocentes que aplacam sua suposta ira. Compreender Deus a partir dessa lógica sanguinária seria idolatria: fazer do sacrifício de Jesus um ídolo tão odioso quanto Baal ou Moloch; ou torná-lo um deus mesquinho, inteiramente divorciado da imagem divina elaborada pelo judaísmo e pelo próprio Jesus.

 

Deus é amor. E justamente por isso Ele não se encontra irado contra sua criação. Deus é enquanto ama. Não há como divorciar este amor do ser de Deus. É por isso – e apenas por isso – que o evangelho é uma boa notícia. Deus nos amou enquanto éramos seus inimigos, nos amou por antecedência, nos ama mesmo quando não O amamos. Não é essa uma declaração clara de que o Pai nos quer bem?


A ceia de Jesus também é afirmação da esperança! Porque Jesus nunca mais beberá ou comerá dela até que venha o reino de Deus. E este reino já veio com Jesus! Todas as vezes que participamos desse banquete, reafirmamos sua vida, sua morte, sua ressurreição e sua esperança.


E hoje, lembramos mais uma vez do domingo da ressurreição, da Páscoa da nossa esperança. É dessa esperança que falamos. Dessa esperança que é teimosa porque parte da teimosia de Deus em não se submeter à morte. “Onde está, ó morte, a tua vitória?”.  Dessa esperança que insiste em iluminar as trevas, em caminhar mais uma milha, em perdoar 70x7, em oferecer a outra face, em escolher vencer o mal com o bem. Dessa esperança da ressurreição de Jesus que se torna também nossa ressurreição. Dessa maravilha do amor do Pai que nos busca, nos acolhe e se revela a nós por meio do Seu Filho, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

 

Porque Ele vive, todos os amanhãs e também nosso hoje pode ser lugar de fé, amor e esperança.

 

Feliz Páscoa!
Marcio Simão de Vasconcellos



[1] GESCHÉ, Adolphe. O sentido. Coleção Deus para pensar, volume 7, p. 92

[2] Ibid., p. 98

 

Tópico: A ESPIRITUALIDADE DA PÁSCOA

Páscoa

Data: 16/04/2017 | De: Natanael

Gostaria de frisar ainda que, Jesus veio sim pra morrer, não de forma louca. É descabida mas, consciente e prazerosa, pois sabia que dá sua morte, dependia toda a vida humana!

Páscoa

Data: 16/04/2017 | De: Natanael

Entendi muito bem o texto, porém, quando falamos de Páscoa, não podemos deixar de fora, a primeira descrita por detalhes em êxodo. A partir daí, discordo em parte com o autor do texto acima, com relação a negação da Páscoa com ênfase na morte, pois toda ênfase está na morte de um cordeiro, que vem aniquilar o poder dá morte sobre os filhos de Deus. Assim como a ênfase dá morte do cordeiro é substitutiva, assim também o é , a do cordeiro de Deus. Agora o clímax dá Páscoa, aí sim é a vida. Não ignorando que, segundo as escrituras, "sem derramamento de sangue não há remissão de pecados."

Novo comentário