LUTERO E O CONTEXTO DA REFORMA PROTESTANTE

19/03/2011 18:06

 

A vida e a obra de Lutero, em suas constantes lutas para compreender a graça e a justiça de Deus, marcam o ponto decisivo da Reforma Protestante. Esta frase não é pretensiosa; antes, reflete a realidade, pois a Reforma só foi possível graças à "experiência de um monge agostiniano em sua cela monástica" (TILLICH, Paul, História do Pensamento Cristão, p. 227). A maneira como Luterou passou a enxergar Deus - de um tirano odiado e temido para um Deus de amor e misericórdia - confunde-se com a própria história da Reforma. Portanto, é a compreensão bíblica sobre a graça de Deus que marca todo esse processo histórico. A busca de Lutero para satisfazer a justiça divina e irada contra o pecador, as suas crises de culpa e ansiedade, suas orações e vigílias constantes e desesperadas, tudo isso culmina nessa (re)descoberta da graça de Deus e da aceitação do ser humano proporcionada por Cristo.


Entretanto, qualquer evento histórico não pode ser estudado sem se levar em consideração os acontecimentos que o antecederam e que serviram como base para seu surgimento. Este texto se propõe a realizar essa análise tendo como parâmetros principais as Artes (pintura, escultura, arquitetura) e a teologia. No primeiro caso, a tarefa é perceber as criações artísticas como um reflexo da alma da sociedade, encontrando nelas os suspiros, desejos, medos e apreensões dos seres humanos medievais; no segundo, é acompanhar a peregrinação teológica de Lutero, desde o mosteiro agostiniano até a confissão de Worms com a qual se inicia esse trabalho. Portanto, antes de estudar mais detidamente a vida de Lutero, sua reforma e teologia, é necessário analisar, ainda que brevemente, como era a vida durante a Idade Média.

 

1. ANTECEDENTES DA REFORMA

Teologia e Vida Espiritual na Baixa Idade Média

A Idade Média foi chamada de Idade das Trevas pelos homens do renascimento. Trata-se de um epíteto pejorativo: o período medieval não foi uma época de trevas absolutas. Antes, houve buscas por novas formas de se relacionar com Deus, e também críticas ao sistema religioso estabelecido.

A grande marca da Idade Média foi a ansiedade (TILLICH, Paul, História do pensamento cristão, p. 228). Esta sensação (que em Lutero recebe o nome de anfechtung) se dava em pelo menos dois níveis. No primeiro caso, a ansiedade era provocada pelo medo diante da morte e do sofrimento. Numa época em que milhares de pessoas morriam devido à fome e à peste (especialmente a Peste Negra que dizimou um terço da população européia), a visão da morte se manifestava em todos os aspectos da cultura medieval: pinturas, esculturas, xilogravuras, e até mesmo os sermões traziam em si a idéia da morte, do sofrimento e do Juízo Final. Um dos quadros mais famosos da época, por exemplo, era a "Dança da Morte" que mostrava a morte, como um esqueleto, dançando e levando para as trevas tanto ricos quanto pobres. No lado do quadro havia uma ampulheta que lembrava a fugacidade da vida. Durante dez dias seguidos, sete horas por dia, Ricardo de Paris, um frade franciscano, pregou sobre a morte, o juízo, o céu e o inferno; sua pregação foi feita no cemitério mais popular de Paris. Outro pregador, João Capistrano, levou uma caveira para o púlpito a fim de dizer à sua congregação: "Olhem e vejam o que restará de vocês!".

 

A ansiedade também se revelava na sensação de culpa diante de um Deus Santo e Todo-Poderoso, diante do qual não se poderia esconder. Na tentativa de aliviar esta culpa, havia diferentes métodos: a autoflagelação pública, com chicotes de couro; as peregrinações a lugares santos; as relíquias; a veneração dos santos; a adoração da hóstia consagrada; a repetida reza do Pai Nosso; e, é claro, as indulgências - artefatos ou documentos emitidos pela Igreja capazes de fornecer perdão a algum parente já falecido, retirando-o do purgatório e levando para o Paraíso. Tudo isso representou uma eficaz maneira de se conseguir fundos monetários para a Igreja. Como diz Timothy George, "se o pecador tivesse como pagar, ele poderia reservar uma doação para que se rezassem missas a seu favor após a sua morte. O Imperador Carlos V deixou uma provisão em dinheiro para que 30000 dessas missas fossem feitas após sua morte; já Henrique VIII, da Inglaterra, exigiu que fossem rezadas missas por ele enquanto durasse o mundo." (Teologia dos reformadores, p. 28).

 

Reflexo nas Artes

Todo este espírito medieval pode ser claramente percebido nas Artes. A pintura, a escultura e a arquitetura espelhavam os valores propostos pela igreja da Idade Média: possuíam uma função didática, servindo à Igreja como veiculadoras das histórias do Evangelho a uma população quase que inteiramente analfabeta; e uma função litúrgica, prestando louvor e honras a Deus, aos santos e aos mártires. A Arquitetura seguiu os preceitos da Escolástica, caracterizando-se pela verticalidade das formas, onde tudo aponta para o céu, e pelo simbolismo presente na estrutura das edificações: as paredes são a base espiritual da Igreja; os pilares são os santos; os arcos, os caminhos para Deus e os vitrais serviam para ensino das Escrituras.

 

O Renascimento


O Renascimento, ou Renascença, foi um movimento de apogeu cultural que se iniciou na Itália, no final do século XIV, e se alastrou por toda a Europa nos séculos XV e XVI. Tendo por base epistemológica e filosófica o Humanismo - movimento intelectual de valorização do Homem, refletindo o caráter da cultura grega da Antigüidade - o Renascimento constituiu-se num verdadeiro florescer cultural, científico, literário e artístico. Suas causas são variadas e complexas: o comércio crescente produziu uma possibilidade de acumular riqueza (que podia ser utilizada para compra de obras de arte), e uma maior comunicação entre diferentes países, tornando conhecidas diferentes formas de pensamento e reintroduzindo na Europa medieval a cultura helênica e a filosofia aristotélica; a invenção da imprensa, por Guttemberg, barateou os livros e expandiu de forma gigantesca o conhecimento humano; outras invenções tecnológicas, como a pólvora (usada contra os povos indígenas americanos e africanos, e que fornecia superioridade militar aos europeus), e o telescópio (que desenvolveu grandemente a astronomia), produziram novas áreas de conhecimento. Na literatura, importantes obras foram escritas, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri (uma viagem do inferno até o purgatório e céu, apresentando uma síntese do mundo medieval, mas contendo os prenúncios da nova visão de mundo que estava surgindo); O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (uma espécie de manual político destinado a ensinar aos príncipes a forma de conquistar o poder e mantê-lo, mesmo contra todas as regras da moral cristã); Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã (uma crítica muito severa aos abusos da Igreja Católica: a ganância, a imoralidade, o formalismo e a ignorância do Clero, além do comércio das indulgências; Utopia, de Thomas Morun (a descrição de uma sociedade perfeita, em plena harmonia, sem tensões ou conflitos sociais); Novum Organum, de Francis Bacon (obra de grande importância para a sistematização do conhecimento científico); e o conhecido Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (obra na qual ele satirizou o feudalismo e os costumes da cavalaria medieval).

 

O Renascimento caracterizou-se por uma nova visão acerca do Homem: o Antropocentrismo. Se durante a Idade Média, a natureza pecaminosa do homem era enfatizada, no Renascimento, o Homem passava a ser visto como algo infinitamente grandioso e de valor. O homem é a medida de todas as coisas. Marcílio Ficino, por exemplo, filósofo deste período, ordena o auto-conhecimento referindo-se ao ser humano como "linhagem divina vestida com trajes de mortais". Dessa forma, o ponto de partida para a construção do pensamento é, não mais Deus, mas o Homem. Trata-se de um retorno à cultura, ao pensamento e à filosofia grega.

 

O Renascimento e as Artes

Como sempre ocorre em qualquer época e lugar, as Artes refletiram as mudanças sócio-culturais que ocorriam na sociedade. Comparando-se a arte medieval com a renascentista, fica relativamente simples reconhecer as diferenças. Os santos e mártires são retratados o mais fielmente possível à figura humana; na verdade, o realismo foi uma busca constante nas obras de diversos pintores e escultores renascentistas e barrocos. Destaca-se Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), cujos quadros são de uma incrível semelhança com seus modelos. A Arte no Renascimento cumpre um papel diferente do que existia na Idade Média: realçar a figura humana, retratando, pelo movimento mais realista do corpo, os movimentos da alma.

Dúvida de Tomé - CARAVAGGIO

 

2. MARTINHO LUTERO

 

Biografia de Lutero
Qualquer biografia padece de uma grande dificuldade: a de retratar com perfeição e inteireza a vida do biografado. Isso ocorre porque a vida de um ser humano - e, especialmente, a vida de alguém como Lutero - não pode ser resumida em poucas linhas; não se pode restringi-la aos limites de um texto, simplesmente porque a vida de uma pessoa abrange nuances que não podem ser alcançadas por abordagens externas. Paul Altahus referiu-se a Lutero como um "oceano" (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 53), e isto certamente indica a profundidade e originalidade de seu pensamento. Embora isto seja verdade, é imprescindível estudarmos a vida de Lutero pois, como já foi proposto, é ele o causador inicial de um movimento religiosos que dividiu a Europa e o mundo.

Dependendo de quem o analisa (se protestante ou católico), enxergou-se Lutero de diferentes maneiras durante a história: desde um monge louco, psicótico demoníaco, um anti-Cristo que derrubava os pilares da Igreja Mãe, até um cavaleiro divino, um Moisés, um Elias e até mesmo o Quinto Evangelista ou o Anjo do Senhor. Entretanto, estas imagens não passam de caricaturas. Lutero sempre viu a si mesmo como um fiel e obediente servo da Igreja. Não desejava fundar nenhuma nova denominação. Nas suas próprias palavras, "a primeira coisa que peço é que as pessoas não façam uso de meu nome e não se chamem luteranas, mas cristãs. Que é Lutero? O ensino não é meu. Nem fui crucificado por ninguém. [...] Como eu, miserável saco fétido de larvas que sou, cheguei ao ponto em que as pessoas chamam os filhos de Cristo por meu perverso nome" (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 55)

 

Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na cidade de Eisleben, filho de um minerador de prata da classe média. Seu nome era Martin Lüder, e somente mais tarde, como fruto de uma nova compreensão teológica, ele troca seu sobrenome para Lutero (a palavra Lutero surge da palavra grega eleutheria, que significa liberdade). Teve três experiências com a proximidade da morte: tropeçou e caiu sobre a adaga que carregava, viu de perto a morte de um amigo, e durante uma forte tempestade no dia 2 de julho de 1505, quase foi atingido por um raio. É nesse momento que, em desespero, Lutero grita: "Salva-me, Sant'Ana, e serei monge!". Após essa experiência, Lutero vai para um mosteiro agostiniano.

 

Lutero estudou Direito, antes de estudar Teologia, e é como perito em Direito que ele entendia a justiça de Deus. Por isso, ao ler o texto de Romanos 1.17 - "A justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: o justo viverá pela fé" - Lutero não podia compreender como o Evangelho, sendo boa-nova, poderia ser relacionada à justiça de Deus que pune os maus, isto é, todas as pessoas. Esta é a imagem que Lutero tinha acerca de Deus: eternamente irado contra o pecador, e absolutamente inatingível. Daí, suas constantes crises e depressões profundas, aliado a um ódio cada vez maior por Deus. Como ele mesmo afirmou: "Eu não amava, na verdade odiava aquele Deus que punia os pecadores; e com um murmurar monstruoso, silencioso, se não blasfemo, enfureci-me contra Deus" (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 64).

 

Em outras palavras, Deus se assemelhava a um Ser que colocava diante do homem uma tarefa impossível de ser realizada, e, depois, zombava da incapacidade deste homem em cumpri-la. E Lutero esforçou-se como poucos para tentar cumprir esta tarefa e aplacar a ira divina. Seu líder na ordem agostiniana, Johann von Staupitz, testemunhou de perto este esforço, e se tornou seu grande conselheiro espiritual. Em parte graças a ele é que Lutero constrói sua teologia. Se para receber o perdão divino, todos os pecados deveriam ser declarados na confissão, Lutero vivia atormentado pelo medo de se esquecer de algum deles. Lutero se confessava a Staupitz durante horas, ia embora e depois voltava correndo com alguma pequena fraqueza que havia esquecido de mencionar. Certa vez, Staupitz, bastante exasperado, disse: ‘Olhe aqui, irmão Martinho. Se você vai confessar tanto assim, por que não faz algo digno de ser confessado? Mate sua mãe ou seu pai! Cometa adultério! Pare de vir aqui com tais tolices e pecados falsos!'" (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 66)

 

A crise pela qual Lutero passava, na verdade, era compartilhada com a maioria dos homens da Idade Média. A solução só veio quando Lutero se deteve na segunda parte do versículo de Romanos: "o justo viverá pela fé". Ele entende, então, que fé se assemelha à mesma confiança que uma criança tem em seu pai, quando se joga em seus braços. Em outras palavras, se somos salvos, isto é exclusiva obra de Deus, não nossa. Assim, Deus é justo, e preside o tribunal de julgamento; mas também é réu, justificando o homem. Na relação homem-Deus, a teologia luterana afirma que o homem é aceito pelo Senhor, independentemente das coisas que faça ou deixe de fazer. Não se trata, portanto, de uma relação quantitativa (quantas coisas devemos fazer para apaziguar a ira divina), mas sim, qualitativa (a aceitação pessoal do fato de que já somos aceitos por Deus, graças à Cruz de Cristo, isto é, à justiça de Deus revelada no Evangelho, que, agora sim, pode ser chamado de "boa-nova").

 

A resolução desta crise coincidiu com o ataque de Lutero aos exageros relacionados às indulgências. Johannes Tetzel, um frade dominicano, defendia a idéia de que "quando o dinheiro retine na caixinha, a alma salta do purgatório para o céu". Suas pregações levantavam muito dinheiro para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Lutero reagiu contra esse tipo de ensinamento através das suas famosas 95 Teses, nas quais criticou o sistema de penitência conforme praticado e ensinado pelo papado. Em uma dessas teses, de número 82, Lutero vai mais além: se a intenção das indulgências era retirar as almas do purgatório, por que o próprio papa não o esvaziava por um santíssimo ato de amor e das grandes necessidades das almas? Isto, pergunta ele, "não seria a mais justa das causas, visto que ele resgata um número infinito de almas por causa do sórdido dinheiro dado para a edificação de uma basílica que é uma causa bem trivial?". Além disso, o papa não tinha o poder de perdoar a culpa a não ser declarando ou confirmando que ela já havia sido perdoada por Deus .

 

A resposta da Igreja não tardou. Na Dieta de Worms, em 18 de abril de 1521, Lutero foi convocado a se retratar diante das autoridades eclesiásticas. É nesse momento que Lutero reafirma sua posição teológica:

"A não ser que eu seja convencido de erro pelo testemunho da Escritura, ou - visto que não dou valor à autoridade não provada do Papa e dos concílios, por ser claro que eles muitas vezes erraram e frequentemente se contradisseram, por um raciocínio evidente, continuo convencido pelas Escrituras às quais apelei, e minha consciência foi feita cativa pela Palavra de Deus. Não posso e não quero retratar-me de qualquer coisa, pois agir contra a nossa consciência não é coisa segura nem permitida a nós. Esta é minha posição. Não posso agir de outra maneira. Que Deus me ajude."

 

Como conseqüência dessa recusa em se retratar, Lutero foi excomungado da Igreja através da bula papal Decet Romanum Pontificem, ainda em 1521.

 

Lutero casou-se com uma ex-freira - Catarina Von Bora - e teve vários filhos. Catarina foi de grande auxílio para Lutero, em parte devido a seu apoio durante suas crises de depressão. Lutero morreu em fevereiro de 1546, tendo presidido a Igreja Luterana até sua morte.

 

Escritos e teologia de Lutero

A teologia luterana foi sendo desenvolvida na vida, no confronto com os problemas, as tentações, as lutas e as crises. Ela parte dessa revelação da graça de Deus. Para entender Deus, é preciso olhar para a cruz. Por isso, a teologia de Lutero é chamada Teologia da Cruz - toda a Bíblia deve ser lida a partir do Cristo crucificado. O rosto de Deus é o rosto desfigurado da cruz por amor amor ao ser humano. A revelação de Deus só vem ao homem por meio da cruz, e fora dela, seríamos todos cegos e todos os nossos altares carregariam o nome Ao Deus Desconhecido. Sendo assim, tudo o que conseguimos ver são as costas visíveis de Deus, ao revelar-se no sofrimento e na cruz.

 

A teologia de Lutero também compreende que a Bíblia aponta para Cristo. Para Lutero, a Bíblia é uma manjedoura dentro da qual Jesus está deitado. Em relação à Igreja, o reformador a compreende como o povo de Deus, isto é, a comunidade de cristãos, e não a instituição.

 

Uma das mais importantes contribuições teológicas de Lutero é o sacerdócio universal de todos os cristãos. Não há mais divisão entre leigos e cleros, pois, como o próprio Lutero afirmou, "Somos todos sacerdotes como Ele (Cristo) é sacerdote; filhos como Ele é Filho; reis como Ele é Rei" (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 96) . Também merece destaque sua atenção sobre as obras de misericórdia que os cristãos deveriam realizar. Em suas palavras, "Quando desejar fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção para os vivos, não para os mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu, o faminto, o sedento, o pobre que tem esposa e filhos e sofre humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece seu trabalho aqui." (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 97).

 

Além de suas 95 Teses, três escritos importantes de Lutero devem ser destacados: Apelo à Nobreza Germânica (1520), na qual ele critica a hierarquia da Igreja; O Cativeiro Babilônico, que é uma crítica ao sistema de sacramentos de Roma; e a tradução do Novo Testamento grego para o alemão.

 

3. A GRAÇA EM LUTERO

Além de tudo o que foi dito a respeito da teologia de Lutero, talvez a principal característica de seu pensamento em relação à graça é que ela era graça de Deus, e não da Igreja. Em outras palavras, não poderia ser comprada, vendida ou negociada por meio das indulgências. "Deixem Deus ser Deus!", era seu grito reformador. Se o "justo viverá pela fé", então a salvação humana é obra exclusiva de Deus, e não provém de quaisquer esforços do homem. Lutero entende, então, que fé significa confiança completa em Deus, um despojar-se Coram Deo (diante de Deus), tal qual uma criança que se joga confiadamente nos braços do pai. Assim, Deus é justo, que preside o tribunal de julgamento; mas também é réu, justificando o homem. Em Cristo, Deus nos declara justos. O próprio Lutero afirma: "Portanto, meu querido irmão, aprenda Cristo e o aprenda crucificado; aprenda a orar a ele, perdendo toda esperança em si mesmo, e diga: "Tu, Senhor Jesus, és a minha justiça, e eu sou o teu pecado; tomaste em ti mesmo o que não eras e deste-me o que não sou." (GEORGE, Thimothy, Teologia dos reformadores, p. 71).

 

Sendo assim, o cristão é ao mesmo tempo inteiramente pecador e inteiramente justo (simul iustus et peccator). Não se relaciona com Deus a partir de seus próprios méritos, mas, como ocorre com o publicano da parábola de Cristo, confia apenas e tão somente no caráter gracioso de Deus que, em Jesus, ama, sustenta e justifica o ser humano.

 

4. CONCLUSÃO

É inegável a grande contribuição da Reforma Protestante (e, particularmente, a de Lutero) para a vida e teologia da Igreja moderna. A reforma nos serve de parâmetro nas mais diversas áreas da teologia e da liturgia cristã.

 

Neste século XXI, poucos são os exemplos de tentativa, principalmente de uma ética baseada nos evangelhos, na vida de Jesus Cristo, e nos moldes da reforma. Ao contrário dos reformadores, nosso evangelho atual é pouco ético, e, conseqüentemente, pouco relevante num mundo pós-moderno. Fica o alerta. A cada dia que passa a igreja afasta-se da cruz, e perde sua identidade de proclamadora do Evangelho, que, em última e principal instância, são "boas-novas" ao ser humano.

Marcio Simão de Vasconcellos

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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CAMENIETZKI, Carlos Ziller. A cruz e a luneta: ciência e religião na Europa moderna. Rio de Janeiro: Access Editora, 2000. 96 p.

DREHER, Martin N. A crise e a renovação da igreja no período da reforma. 2ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996. Coleção História da Igreja, volume 3. 131 p.

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TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci Maraschin. 3ª ed. São Paulo: ASTE, 2004. 293 p.

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