O RISCO DE PERDER-SE

02/06/2016 18:26

 

Texto bíblico: Marcos 8.34-36

Um dos maiores perigos que qualquer ser humano tem de enfrentar é o de perder sua própria identidade, isto é, perder-se de si mesmo. O próprio Jesus, no evangelho de Marcos, afirmou como é arriscado e mortal perder a própria alma, ainda que se ganhe o mundo todo (Mc 8.36). Na lógica do Mestre, não vale a pena conquistar todo o universo – físico, simbólico, tanto faz – se o preço disso for a perda da própria identidade.

Perder a alma é um risco que nos assedia constantemente. Isso ocorre toda vez que perdemos de vista o que é mais importante e central à nossa fé e à nossa vida. Ocorre quando invertemos valores e quando, numa típica atitude farisaica, coamos mosquitos e engolimos camelos (cf. Mt 23.24). Ou quando, num misto de orgulho e preconceito, usurpamos os primeiros lugares com o objetivo de sermos chamados de mestres pelos outros (Mt 23.5-7). Ou ainda quando transformamos nossas pregações em pesos insuportáveis para os ombros dos outros (Mt 23.4). Também ocorre quando, em nome da defesa do Príncipe da Paz, guerreamos contra nosso próximo, religiosamente assaltamos as casas das viúvas que representam os mais necessitados dentre nós, patrulhamos consciências alheias para escraviza-las e torná-las nossos clones hermenêuticos, e matamos – de novo: física ou simbolicamente, tanto faz – nossos irmãos que ousam pensar diferente de nós. Enfim, perdemos a alma quando nos tornamos, em função de tudo isso, mortos ambulantes inconscientemente maquiados para o próprio funeral (Mt 23.27).

Ainda de acordo com Jesus, o caminho para não se perder é viver para fora de si mesmo. “Qualquer que quiser salvar a sua vida”, afirma Jesus veementemente, “irá perdê-la, mas qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará.” (Mc 8.35). Dessa forma, salvar a própria vida implica em amar tanto a Jesus quanto à sua mensagem de boas-novas. Amor esse, por sua vez, que conduz à perda da própria vida e, de forma paradoxalmente consoladora, ao seu reencontro em plenitude. Mas há algo nessa passagem que serve como critério para essa vida plena: não se pode divorciar o Cristo que anuncia do conteúdo do seu anúncio, pois o nome Jesus é um nome vazio, caso não seja interpretado à luz do que ele disse e fez. É perfeitamente possível perceber que, atualmente, dentro e fora do mundo evangélico, muita gente que proclama o nome de Jesus o faz sem qualquer vínculo ou compromisso com sua mensagem. Sendo assim, estão proclamando um ídolo. E mais grave: fazem do nome de Jesus um instrumento de medo e pavor, que gera culpa e a fuga de Deus.

Mas é o próprio Deus que se revela em Jesus. O cerne do evangelho, isto é, o conteúdo da mensagem de Jesus e aquilo que faz desse nome o nome sobre todos, é exatamente essa afirmação: ver a Jesus é também ver ao próprio Deus que se revela ao ser humano. Desde cedo na história da igreja, afirmou-se que o centro da fé cristã é Jesus, o Deus encarnado, o Verbo que se faz fraqueza (cf. Fp 2.5-8). “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais pelos profetas”, diz o escritor aos Hebreus, “a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho (...) o resplendor de sua glória e a expressa imagem de sua pessoa.” (Hb 1.1,3). Isto é, o Deus que não pode ser visto por ninguém[1], agora se revelou num bebê depositado numa manjedoura, disputando espaço com restos de comida de animais; num menino que, diante da expressão máxima da religiosidade de seus dias (o Templo em Jerusalém), deseja tratar das coisas de seu Pai e que crescia em sabedoria, estatura e graça (Lc 2.46-52); num homem cuja maturidade, divindade e humanidade se revelaram sob a forma de parábolas que uniam poesia, sabedoria e amor, e em milagres que restauravam a dignidade de homens, mulheres e crianças.

Sobretudo no evangelho de João, isso se torna cristalino: Jesus é o revelador de Deus para os seres humanos e quem vê a Jesus também encontra o Pai (cf. Jo 14.9). Olhar para Jesus, portanto, é perceber como Deus é, age, sente, chora, se alegra, compartilha alegria do reino e sofre junto conosco as dores do sofrimento humano. “O Verbo se fez carne”, afirma o evangelho joanino, “e habitou entre nós, e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1.14). A mesma temática é retomada na 1ª carta de João: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vos anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada).” (1ª Jo 1.1-2).

O caminho para a vida e para o não perder-se de si mesmo, portanto, passa pela encarnação do Verbo, critério para julgar o texto bíblico, a fé e a própria vida. Enxergar a Deus em Jesus nos afasta do medo, da paralisia, da culpabilização extrema que destrói a esperança e a paz. Experimentar o amor de Deus em Jesus nos liberta de todo pavor. Por essa razão, afirma Adolphe Gesché:

Seria muito interessante que depois do “Livrai-nos do mal” fosse acrescentado no fim do pai-nosso: “Livrai-nos do medo”. Assim como em relação à fatalidade, o cristianismo é um anúncio de não viver o temor e não nos deixarmos conduzir por ele. Dessa relação totalmente nova e extraordinária com Deus nasce um ser humano novo e libertado (...) Quando são João define Deus como amor (ver 1Jo 4,8.16), trata-se – já não nos damos conta disso – de uma verdadeira transgressão a todas as ideias habituais sobre Deus. Eis que Deus já não é um Deus que ameaça.[2]

Se não perder a própria alma implica em amar a Jesus e ao seu evangelho, então somente quem enxerga a Deus dessa maneira – isto é, conforme revelado por Jesus – é capaz de salvar a própria vida, porque antes a deu a Deus e ao próximo. A partir desta mesma lógica, Mário de França Miranda afirma:

A fé cristã é profundamente positiva e otimista. Sem desconhecer o pecado, a tendência egocêntrica presente no ser humano, as consequências desastrosas do egoísmo, ela afirma primariamente a Boa Nova de um Deus que nos ama e nos aceita, que se alegra em nos perdoar, que se revela como amor e misericórdia, suplantando assim o pecado humano. Ser cristão não é se carregar de novas obrigações, que viriam a se juntar às muitas que já temos. Ser cristão é viver as inevitáveis tensões da nossa condição humana de modo diferente, a saber, com fé, esperança e amor, iluminados e fortalecidos por Deus.[3]

Resgatemos essa verdade evangélica. “Deus me ama, a Bíblia assim o diz”, eram as palavras de uma singela música cristã. Esquecer-se dessa verdade significa perder a própria alma.



[1] “Não poderás ver a minha face”, diz Deus a Moisés, “porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êx 33.20). A beleza dessa narrativa, contudo, não está nesse esconder-se divino, mas na maneira como Deus proclama que revelará sua glória ao seu servo Moisés. “Rogo-te que me mostres a tua glória”, Moisés ousa pedir. E Deus responde: “Eu farei passar toda a minha bondade diante de ti, e proclamarei o nome do Senhor diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êx 33.18-19). Logo a seguir, a experiência da passagem de Deus é sinalizada pela descrição de seu caráter: “O Senhor, o Senhor Deus misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade.” (Êx 34.6). O Deus da Aliança com Moisés é, portanto, o Deus de toda bondade e misericórdia.

[2] GESCHÉ, Adolphe, O Cristo. Coleção Deus para pensar. Volume 6, p. 44.

[3] MIRANDA, Mario de França, A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça, p. 11.

 

Tópico: O RISCO DE PERDER-SE

ótimo

Data: 30/06/2016 | De: Renato

Texto muito bom, nos faz refletir na nossa caminhada.

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