MÚSICAS DE UM NATAL NA PERIFERIA DO MUNDO

24/12/2015 11:37

 

Qual a trilha sonora do primeiro Natal?

Talvez, descrever a cena e aprofundar seus significados possa ajudar a responder a essa questão.

Estamos no meio de uma longa e cansativa jornada. Viagem já difícil de ser realizada numa situação de normalidade. Ombros pesados por causa do cansaço da caminhada e da responsabilidade pelo bem-estar da esposa grávida. Os pés quase recusam a dar mais um passo. Mas José continua. Ele e Maria. E o bebê no ventre da mulher, pronto para vir ao mundo.

Na mente, as lembranças de menos de um ano atrás. Palavras do anjo. “José, o menino que sua esposa espera será chamado Jesus, Deus-Emanuel”. Deus conosco. O que essas palavras significavam na cabeça de José? Seria mesmo possível pensar que Deus estava com eles naquela hora? Seria possível afirmar a esperança como realidade palpável e não como fuga do mundo? Seria possível crer num Deus conosco em um tempo de tanta escassez? De tanta fome e violência? De tanta indiferença religiosa enfeitada pelas liturgias do Templo em Jerusalém? De tanta opressão política, econômica e social, especialmente praticada nas periferias do Império? Deus conosco?! Só se fosse piada!

Piada de mau gosto enfatizada por aquela noite difícil na busca por um lugar para se hospedar. “Não há vagas! Não há vagas! Não há vagas!”. Eis a música que embalou aquele primeiro Natal. José e Maria só são acolhidos num dos lugares mais insalubres: um estábulo, pobre, feio, pequeno e mal-cheiroso (sim, porque somente nos presépios que montamos não há cheiro!). É aí que os gritos das dores do parto somam-se aos berros das cabras, bezerros, jumentos. Eis a segunda música natalina: choro de bebê recém-nascido embalado pela algazarra dos animais.

Segundo a profecia angelical, o Deus-conosco nasceu. Envolto em panos, mamando nos seios de Maria; deitado num coxo, disputando espaço com restos de alimentos dados aos animais. É isso que significa Deus-conosco? Deus partilhando desses não-lugares? Que tipo de música natalina combina com tal cena?

Seja qual for a melodia, sua letra é escândalo puro. O Natal é plena e perfeitamente escandaloso pois revela algo surpreendente: Deus resolveu vir ao mundo no lugar mais impróprio para uma divindade. Não nasceu nos Templos suntuosos nem no luxo dos palácios reais. Não veio como general de guerra à frente de um exército e nem envolto em riquezas. Deus se formou no ventre de uma menina do interior, despreparada, jovem e, por isso, vulnerável, para então vir ao mundo num coxo em Belém. Melodia descendente, em tons menores e, por vezes, sombrios. Compassos tensos, notas profundas e aparentemente desarmoniosas.

O escândalo dessa melodia natalina reside na encarnação divina, descrita tão bem no texto do evangelho de João – “a Palavra se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória”. Esta é a ilógica afirmação de que Deus decidiu se fazer gente. No bebê, no colo de Maria, Deus se fez pessoa, com rosto, peso, cheiro, pele, gostos, lágrimas e sorrisos; enfim, fez-se plenamente humano. Como diz, poeticamente, Rubem Alves:

“Deus fez-se corpo. Encarnou-se.

Corpo: imagem de Deus.

Corpo: nosso destino, destino de Deus.

Isto é bom.

Eterna divina solidariedade com a carne humana.

Nada mais digno.

O corpo não está destinado a elevar-se a espírito.

É o Espírito que escolhe fazer-se visível, no corpo.

Corpo: realização do Espírito: suas mãos, seus olhos, suas palavras, seus gestos de amor...

Corpo: ventre onde Deus se forma. Maria, grávida, Jesus, feto silencioso, à espera, protegido, no calor das entranhas de uma mulher.

Jesus: corpo de Deus entre nós.

Corpo que se dá aos homens.

Corpo para os corpos, como carne e sangue, pão e vinho.”

 

Eis diante de nós a melhor e mais intensa melodia deste primeiro Natal. “A esperança nasceu na noite de Natal”, diz Orazio Francesco Piazza. Este símbolo do cristianismo, tornado visível em muitos presépios nessa época, representa um dos principais traços da fé cristã: a aproximação de Deus aos lugares pobres do mundo e o seu cuidado para com homens e mulheres carentes do básico para uma vida digna. A encarnação faz da manjedoura um lugar acolhedor para todos os pobres e necessitados do mundo. Por causa do Verbo, encarnado num bebê descansando no colo de Maria, todas as manjedouras do mundo tornam-se lugares sagrados e todos os não-lugares revelam-se habitação de Deus.

Melodia gloriosa e cheia de graça!

Melodia do próprio Deus como um de nós embalado pelas canções de ninar de Maria.

Melodia de Deus que nasce, agora, mais uma vez, como sempre fez e fará, no coração de todos e todas que tem ouvidos atentos a essa trilha sonora.

Nesse Natal, quero lembrar-me dessa melodia, não apenas como exercício mental ou espiritual, mas também como canção a ser entoada a plenos pulmões. Quero lembrar-me daquele primeiro Natal. Daquele Natal sem árvores montadas, nem luzes brilhantes nas ruas, nem presépios armados. Quero lembrar-me daquele Natal quando não havia lojas de departamentos, lotadas com pessoas em busca de presentes e nem cartões de crédito ou Black Friday’s.

Quero ouvir mais uma vez a melodia que vem da manjedoura. Quero também escutar a melodia que vem dos anjos e dos pastores no campo, festejando juntos a novidade da vida presente no mundo a partir daquela noite: “Não temam! Eis novas de grande alegria!”

Quero ouvir a melodia que tira o medo da alma e do coração pois sua letra fala do Deus amoroso, repleto de compaixão e ternura, que está no portão à espera do filho que se perdeu, mas que também está nas montanhas e desertos em busca da ovelha extraviada, conforme revelado em Jesus de Nazaré.

Quero ouvir, cantar e celebrar essa trilha sonora que vem do primeiro Natal. E, ao ouvir os tons graves, profundos, belos e tristes, simples e cristalinos, de todas essas melodias, quero cantar a esperança e a beleza da vida.

Quer unir-se a mim?

Faça assim: abra bem seus ouvidos. Fique quieto por um instante. Ouça.

Há canções para você.

 

Um abençoado Natal para você e sua família!
Marcio Simão de Vasconcellos

Em 24 de dezembro de 2015, às 00:14h