Da amizade ao amor: o casamento de C. S. Lewis e Joy Davidman
Não existe nenhum mistério quanto ao meu casamento. Conheço a senhora há muito tempo: ninguém pode identificar o momento em que a amizade se transforma em amor.
C. S. Lewis
Clive Staples Lewis é, sem dúvida, um dos mais importantes escritores do século XX. Sua obra é vasta engloba diversos gêneros literários, que vão desde livros de filosofia e teologia, estudos sobre literatura, poemas até contos de fada e ficção científica.
Quando Lewis tinha apenas nove anos de idade, sua mãe, Florence Augusta Lewis, faleceu, vítima de câncer, no dia 23 de agosto de 1908. O impacto desta perda repercutiu em toda a família Lewis e o menciono aqui porque tem íntima relação com outra perda que Lewis sofreria, agora em idade adulta: a morte de sua esposa Helen Joy Davidman, em 13 de julho de 1960, também vítima de câncer.
Joy foi uma poetisa e escritora norte-americana, ganhadora de diversos prêmios literários. Como ocorreu com Lewis, Joy encantou-se com a literatura fantástica dos livros de George MacDonald, especialmente seu conto de fadas Phantastes. Enquanto Lewis o leu aos dezessete anos, Joy leu essa obra ainda criança, revelando uma precoce e aguda inteligência. Em 1942, casou-se com William Lindsay Gresham, com quem teve dois filhos: David Lindsay Gresham e Douglas Howard Grescham. O casamento, contudo, foi profundamente conturbado: a família enfrentava dificuldades financeiros e William tinha problemas com bebida revelando um comportamento cada vez mais violento. O casal acabou se separando.
Joy já conhecia Lewis por meio de seus escritos. Ambos se conheceram pessoalmente em agosto de 1952, em uma viagem que Joy fez à Inglaterra. Ela passou o período do Natal desse ano em companhia de Lewis e seu irmão Warren. Em novembro de 1953, Joy retornou à Inglaterra, agora acompanhado de seus dois filhos, desejando recomeçar a vida. Inicialmente, alugou um apartamento em Londres, mas logo se viu em dificuldades financeiras pois o ex-marido havia parado de enviar dinheiro para os filhos, conforme havia sido acordado no divórcio. Lewis, então, encontrou para ela uma casa, próximo a Oxord, e pagou o aluguel e as taxas escolares das crianças. Em seu diário, o irmão de Lewis, Warren, escreveu: "Para Jack [Jack era o nome que Lewis pediu aos seus amigos para chamá-lo], a atração foi, a princípio, sem dúvida intelectual. Joy foi a única mulher que ele conheceu ... que tinha um cérebro que combinava com o seu em flexibilidade, amplitude de interesse e capacidade analítica, e acima tudo com humor e um senso de diversão.”
Em 1956, o visto de permanência em Londres não foi renovado e Joy precisava retornar aos EUA. Lewis então sugeriu que eles se casassem no cartório. Seria um casamento de “amizade e conveniência”, no dizer de Lewis, que garantiria a permanência de Joy no Reino Unido. Assim, em 23 de abril de 1956, Lewis e Joy casaram-se no cartório de registro, em Oxford. Após o casamento, cada um foi para sua própria casa.
Mas em março de 1957, Joy sofreu um acidente em casa e precisou ser internada no hospital. Lá, descobriu que estava com câncer incurável. Nesse momento, antecipando a dor da perda, Lewis descobriu que estava apaixonado por ela. Como escreveu posteriormente, “ninguém pode identificar o momento em que a amizade se transforma em amor”. No caso de Lewis, a alegria da descoberta de estar amando uniu-se ao temor pela vida de Joy ou, nas palavras do próprio Lewis, “grande beleza e grande tragédia entraram na minha vida”. Em 14 de novembro de 1956, ele escreveu a um ex-aluno do Magdalene College: “Eu gostaria que você orasse muito intensamente por uma senhora chamada Joy Grescham e por mim. Estou prestes a me tornar muito em breve um noivo e, ao mesmo tempo, um viúvo, pois ela está com câncer. Você não precisa mencioná-lo até que o casamento (que será realizado na cama do hospital) seja anunciado.”. Já ao seu amigo de infância Arthur Greeves. Lewis escreveu: “Joy está no hospital, sofrendo de câncer. As perspectivas são 1. Uma chance minúscula de cura. 2. Uma probabilidade razoável de alguns anos mais de vida (tolerável). 3. Um perigo real de que ela possa morrer em poucos meses. Será uma grande tragédia para mim perdê-la.” Joy e Lewis casaram-se no hospital, no dia 21 de março de 1957.
A saúde de Joy melhorou ela pôde sair do hospital e ir para casa de Lewis, chamada The Kilns. No ano seguinte, o casal viajou em uma lua de mel tardia para o País de Gales e para a Irlanda. Em 1960, eles realizaram uma sonhada viagem para a Grécia, visitando os locais que haviam inspirado a criatividade literária de ambos.
Porém, ainda no ano de 1960, a doença de Joy retornou com força e ela faleceu no dia 13 de julho de 1960. “Não posso descrever a aparente irrealidade de minha vida deste então”, escreveu Lewis. “Ela recebeu a extrema-unção e morreu em paz com Deus. Tentarei escrever de novo quando tiver mais controle sobre mim mesmo. Pareço mais um sonâmbulo atualmente.”
Lewis escreveu um livro tentando registrar suas emoções e percepções sobre a perda da esposa. Publicado em 1961, Anatomia de uma dor: um luto em observação registra porções do diário de Lewis, na verdade, registra um pouco de sua alma. Lewis se desnuda nesse livro, apresentando suas dúvidas, temores, esperanças e lágrimas, num misto de sofrimento intenso e fé em Deus. “Nesse meio tempo, onde está Deus?”, pergunta Lewis. “Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma ideia de vir a necessitar Dele [...] se se lembrar e voltar a Ele com gratidão e louvor, você será – ou assim parece – recebido de braços abertos. Mas, volte-se para Ele quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio. Bem que você poderia dar as coisas e ir embora. Quanto mais espera, mais enfático o silêncio se torna. Não há luzes nas janelas. Talvez seja uma casa vazia. Será que, algum dia, chegou a ser habitada?”
A dor de Lewis relembrava a perda de sua mãe. Com raiva, ele registrou em seu livro: “Câncer, câncer e mais câncer. Minha mãe, meu pai, minha mulher. Pergunto-me quem será o próximo da fila!”. Lewis sentiu dificuldades até mesmo em conversar com os filhos de Joy, agora seus afilhados, especialmente com Douglas Gresham. Em Anatomia de uma dor, ele escreve: “Não consigo falar sobre ela com as crianças. Quando tento fazer isso, aflora-lhes ao rosto não o pesar, nem o amor, nem o medo, tampouco a piedade, mas a pior de todas as manifestações, o embaraço. Eles me olham como se eu estivesse praticando um ato indecente. Torcem para que eu pare. Com a morte da minha mãe, sentia exatamente a mesma coisa diante da mais simples menção a seu nome por meu pai. Não posso culpá-los. Os meninos são assim.”
O amor entre os dois foi bastante real e intenso. Lewis afirmou que ele e Joy festejaram o amor “em cada aspecto dele – grave e alegre, romântico e realista, vez ou outra tão dramático quanto uma tempestade de trovões, poucas outras vezes de modo tão confortável, cômodo e agradável quanto usar chinelos macios. Nenhuma fissura da alma nem do corpo ficou por preencher.”
Numa carta escrita em 30 de agosto de 1960 e endereçada ao seu amigo de infância, Arthur Greeves, Lewis afirma: “Poderia ter sido pior. Joy partiu de forma mais descomplicada do que muitos que morrem de câncer. Houve um par de horas de dores atrozes em sua última manhã, mas o resto do dia ela passou na maior parte dormindo, embora lúcida sempre que estava consciente. Duas de suas últimas observações foram: ‘Você me fez feliz’ e ‘Estou em paz com Deus.’. Ela morreu às 22h naquela noite.”
Certa ocasião, bem perto do final, Lewis disse à Joy: “Se você puder... se lhe for concedido... venha até mim quanto eu também estiver em meu leito de morte”. “Concedido!”, ela prometeu. “O Céu iria ter um trabalho danado para me deter; e, quanto ao Inferno, eu o faria em pedaços.”. Joy sorriu, mas não para mim. Poi si tornò all’eterna Fontana [Então regressou à Fonte Eterna].
As citações desse texto foram retiradas dos livros abaixo:
LEWIS, C. S. Cartas de C. S. Lewis. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2021.
LEWIS, C. S. Cartas a uma senhora americana. São Paulo: Vida, 2006.
LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor: um luto em observação. São Paulo: Vida, 2006.
Caso você tenha interesse em conhecer mais, recomendo o excelente filme TERRA DE SOMBRAS, estrelado por Anthony Hopkins como C. S. Lewis:
https://www.youtube.com/watch?v=S4lkiMmBsIQ&t=1237s