ÉTICA EM QUESTÃO

08/08/2011 18:08

 

 

SUNG, Jung Mo & SILVA, Josué Cândido da. Conversando sobre ética e sociedade. 12a edição. Petrópolis: Vozes, 2003. 117 p.

 

O livro Conversando sobre ética e sociedade busca apresentar uma proposta de estudo sobre ética que seja, ao mesmo tempo, profundo e transformador, com linguagem clara e de fácil apreensão. O objetivo do livro é propor uma “ética da responsabilidade”, capaz de, no ato de questionar os valores morais da sociedade, desmascarar interesses não confessados ou inconscientes, não se tornando, portanto, uma simples reprodução de valores e normas vigentes nesta sociedade. Os autores são Jung Mo Sung, graduado em filosofia e teologia, professor de pós-graduação em ciências da religião no I.M.S. e autor de vários livros, e Josué Cândido da Silva, filósofo, cientista social e, atualmente, professor da Universidade Católica de Santos.


Os três primeiros capítulos tratam da teorização acerca da ética, que é definida pelos autores como uma reflexão teórica acerca dos fundamentos ou princípios de um sistema moral que justifica e legitima estes fundamentos ou os critica. Em outras palavras, ética refere-se a uma crítica ou um “estranhamento” diante da normatividade moral adotada por determinado grupo social; é “a descoberta da diferença entre o que é e o que deveria ser” (p. 14). Uma vez que o ser humano, diferentemente dos animais, não nasce “pronto”, mas precisa aprender a agir de acordo com cada situação que vive no processo de construção de seu próprio ser, a sua liberdade é um fato que implica em responsabilidade, já que suas ações produzem conseqüências para si mesmo e para os outros.

Outros dois aspectos apontados pelos autores são a indignação ética, que só surge quando a realidade existente é destituída de qualquer intocabilidade imune à questionamentos o que, por sua vez, rejeita situações de injustiça apresentadas como “normalidade”; e o fato de que as ações humanas trazem efeitos (conscientes ou não) pelos quais somos responsáveis. Estes questionamentos éticos trazem à tona as contradições ou conflitos existentes entre os interesses pessoais e os da coletividade, e os de curto e de médio ou longo prazo. De todos estes aspectos surge uma consciência ética distinta da mera assimilação dos valores apresentados (ou impostos) como normalidade.

A adoção de uma determinada maneira de agir ou responder diante de cada situação é fruto da internalização da cultura, que se torna uma “segunda natureza”. É preciso observar que esta cultura não é única: diferentes grupos sociais produzem culturas distintas, em maior ou menor grau. Entretanto, a objetividade da cultura faz com que a realidade cultural em que se vive – uma possibilidade dentre várias outras – seja vista como a realidade, absoluta e coercitiva, para com os que vêem de forma diferente. Em outras palavras, a vida é enxergada com os óculos da cultura a que se pertence.

Justamente por isso, as mudanças que promovam conflito ou que advoguem uma alteração nos valores e princípios de uma sociedade, não são facilmente aceitas. Nesta relação com o diferente, cuja presença e discurso revelam a relatividade da cultura construída, a insegurança e o medo sentido pelos que defendem os valores da cultura vigente, se expressam em mecanismos de repressão muito variados. O diferente, assim, é visto como lunático, doente, malfeitor ou demônio. Mas o contato com o diferente também se dá no encontro de culturas de diferentes países. Historicamente, quando isto ocorre, a tendência sempre foi o povo melhor armado ou mais forte economicamente dominar os diferentes para explorá-los.

Uma vez que a interiorização dos valores de uma cultura não é perfeita, há espaço para a liberdade contestadora humana. Entretanto, também neste caso, os mecanismo de repressão – que apresentam a unicidade da realidade cultural como a verdade, expulsam os diferentes, ou ainda buscam legitimar a ordem vigente – são largamente utilizados. Nas sociedades tradicionais, esta legitimação se dava pelas vias da tradição que, por sua vez, encontrava apoio na religião. Mudanças não eram bem-vindas. Já nas sociedades modernas, especialmente com o mito do progresso, foi a tradição que ganhou status de negatividade, enquanto que as mudanças progressistas eram bem recebidas. Aqui, tudo é legitimado pelo ideal do progresso; não existe lugar para a ética que é substituída pela técnica. Contudo a ineficácia desta resposta progressista diante das questões levantadas pela vida tornou-se patente, e, por isso, a ética voltou a ser um tema importante na sociedade.

No terceiro capítulo, os autores analisam qual o critério usado pela ética proposta e quais as possíveis posturas morais na elaboração de uma resposta às questões diversas. Duas posturas, diametralmente opostas entre si, são apresentadas: o essencialismo, cujo conjunto de normas comportamentais é utilizado para toda e qualquer situação, impondo sobre o indivíduo regras de conduta transcendentes e autoritárias; e a moral individualista, fruto da reação moderna contra o tradicionalismo, cujas normas são resultado da escolha do próprio indivíduo que tem sua razão como único critério de escolha. Tanto a moral essencialista como a individualista criam problemas: a primeira, ao retirar do ser humano a possibilidade de mudança das regras morais – uma vez que estas são exteriores a ele – retira também sua liberdade, paradoxalmente se contrapondo às suas raízes judaico-cristãs cuja ênfase profética é patente. Já a moral individualista, a “moral do capitalismo” (p. 47), assume um caráter egoísta, cuja ótica do “cada um por si” se caracteriza por uma irresponsabilidade diante da convivência social. Em outras palavras, é o interesse do indivíduo – e apenas isto – que determina suas ações na sociedade que, por isso mesmo, podem (e, na maior parte dos casos, são) ser usadas contra o próximo.

Uma terceira proposta, a ética da responsabilidade, é apresentada pelos autores. Neste caso, os padrões morais de cada grupo social são definidas pelo próprio grupo, com a diferença de não serem inflexíveis. Assim, tanto os efeitos quanto o contexto de cada ação precisam ser levados em conta nesta orientação ética. É o mesmo princípio do Sábado ter sido feito para o homem, e não o contrário; as regras morais deixam de possuir um caráter de imunidade, e são avaliadas sob a ótica de critérios éticos. E o mais importante destes é a vida humana.

Nos próximos capítulos, os autores aplicam a ética a alguns campos da vida humana. O primeiro destes é o aspecto da economia. Neste caso, hoje, invariavelmente, os valores éticos são rejeitados, em função de atender os interesses econômicos. O acúmulo infinito de riquezas também infinitas tornou-se o objetivo a ser alcançado, não importam o sofrimento alheio, a injustiça, ou o fato de dar ao senhor Rockfeller – ou melhor, ao seu cachorro – o leite de uma criança pobre. O mercado é o eixo central do capitalismo, e, por meio dele, seres humanos tornam-se consumidores em potencial. Caso não possuam o capital necessário para a compra de produtos diversos (e supérfluos), deixam de ser consumidores. Deixam, também, de ser considerados humanos por este sistema que impossibilita sua dignidade.

Aliado a tudo isso, ainda existe a concorrência e o egoísmo como características desta sociedade de consumo. A primeira, resultado do conflito de interesses presente na busca pelos desejos do indivíduo, funciona como uma espécie de seleção (anti) natural que escolhe os mais competentes para sobreviver no mercado, excluindo os restantes. Já o egoísmo é apresentado como altruísmo, na medida em que é encarado como a melhor maneira de resolução dos problemas modernos. Em que pese tudo isso, entretanto, a ética voltou a ser analisada no campo econômico-empresarial, apesar de, ainda, estar limitada ao objetivo de maximizar os lucros nestas empresas. É necessário, portanto, aplicar a ética ao mercado, buscando modificá-lo, mas não exterminá-lo.

O capítulo cinco aborda a questão da ética aplicada à política. Também aqui, a modernidade provocou mudanças na maneira pela qual entendia-se política. No Estado moderno, a ética moral dá lugar à ética política. Sua preocupação tornou-se o meio para que os governantes permaneçam no poder, ou seja, ela pretende ser amoral. Além disso, o Estado se burocratizou, afastando do âmbito das decisões a maior parte da população; no lugar de defender e representar o interesse público, tornou-se um meio para acumulação de capital. É neste cenário que a ética torna-se necessária, propondo não a extinção do sistema político, mas sua transformação, colocando o Estado no papel que lhe é devido (servir o povo).

No sexto capítulo, a ética é relacionada à questão da ecologia, ou seja, às relações de intercâmbio que os seres vivos mantém entre si e com o meio em que vivem. Diante do caos ecológico, revelado na extinção em série das espécies, na destruição do meio-ambiente, e no extermínio do próprio homem – uma vez que este não é mais um fim, mas um meio para se alcançar outra finalidade, a saber, o acúmulo de capital – uma ética individualista, baseada no egoísmo característico do capitalismo, buscou promover algumas propostas ou “soluções” para o problema. Tais respostas, entretanto, revelam-se, na verdade, como obstáculos na reformulação tanto da maneira como o ser humano se relaciona com a natureza quanto do próprio capitalismo industrial que, com sua busca insaciável pelo lucro, recusa-se a dar ouvidos à ética ecológica.

A primeira destas propostas é o conservadorismo, cujo objetivo seria preservar as espécies da fauna e flora ainda existentes, especialmente, as localizadas nos países subdesenvolvidos do Hemisfério Sul, realizando-se, para isso, uma imposição de um controle de natalidade sobre tais países. No entanto, esta proposta busca evitar os efeitos destrutivos provocados pelo capitalismo – aliás, às custas das massas mais pobres – sem cortar suas causas; em outras palavras, a mudança proposta atinge apenas os países pobres, enquanto que os ricos (responsáveis pela maior parte da destruição ambiental) manteriam sua industrialização consumista da mesma forma. Uma outra proposta seria o ecodesenvolvimento, ou seja, a possibilidade de que, graças ao avanço tecnológico, novas formas de produção serem encontradas de maneira a não mais agredir o ambiente. Entretanto, a História demonstrou que, embora tais tecnologias sejam descobertas, isso não resultou numa utilização destas para a reversão do processo destrutivo da natureza; pelo contrário, tais tecnologias trouxeram consigo novos problemas ambientais, uma vez que ainda continuam sendo utilizadas por uma ótica capitalista-consumista.

Falta, portanto, no campo da ecologia, uma mudança estrutural de pensamento que se dê tanto no âmbito da coletividade quanto da individualidade; é preciso uma completa reconstrução dos valores da sociedade capitalista. Enquanto esta mudança não ocorre, ou seja, enquanto o consumismo (que equivale felicidade à compra de produtos inúteis e supérfluos) não for combatido em favor de uma sociedade mais justa e digna, a vida – nossa e das próximas gerações – não estará segura.

No sétimo capítulo, os autores analisam as relações de gênero sob o ponto de vista da ética. As sociedades antigas e modernas foram e são marcadamente patriarcais. Esta mentalidade penetra toda a cultura humana, desde a religiosidade até a própria língua. Entretanto, tal concepção de gênero não é biológica; é, antes, sociológica; e este fato, necessariamente, implica em se abandonar qualquer justificativa pseudo-científica para se analisar a questão.

A realidade das mulheres nas sociedades antigas era legitimada pela voz da religião e da filosofia. O papel que cabia às mulheres neste período era o de subalterna, cujo trabalho se limitaria ao aspecto doméstico e cuja produção não lhe pertencia. Já nas sociedades modernas, embora a situação da mulher tenha sofrido uma pequena melhoria – não devido à qualquer concessão do homem, diga-se de passagem, mas sim, pelo esforço da própria mulher em reverter este quadro – ela ainda permanece sendo vista como subalterna, cujo trabalho envolve salários menores que o dos homens (sendo, em boa parte dos casos, administrados unicamente por estes) somado à mesma carga de serviço doméstico. Aliado a isto, a violência contra a mulher, cuja existência procura-se esconder, e a própria teologia machista e exclusivista, revelam que pouca coisa mudou das sociedades antigas para as modernas.

Todas as mudanças conquistadas pelas mulheres podem ser apontadas como resultado da ação da ética que consegue enxergar o sofrimento, tanto de mulheres quanto de homens, existente na hierarquização macho-fêmea. Como diz o autor, o companheirismo buscado por homens e mulheres só pode ser alcançado quando a igualdade permeia a relação entre os diferentes. Estas mudanças precisam ser buscadas por quem deseja dar ouvidos à ética.

No último capítulo, os autores apresentam um resumo do que foi demonstrado nos capítulos antecedentes, procurando apontar a ética da responsabilidade como uma proposta capaz de, ao menos, indicar possibilidades de melhoria da sociedade. Assim, no lugar de uma ética individualista ou essencialista, cujas “soluções” criam novos problemas sem resolver os já existentes, os autores propõe uma ética responsável e solidária em favor das vítimas do processo de exclusão social. Longe de ser uma utopia, esta ética, embora não seja fácil, é possível de ser atingida e praticada.

Embora relativamente pequeno, este livro traz assuntos muito importantes para a formação de uma sociedade mais justa e humana. Para isso, é preciso rejeitar a ética individualista, serva do capitalismo, e a essencialista, que, ao elevar a moral humana à categoria de imutável, atribui perfeição à uma criação de um ser humano imperfeito, o que, no mínimo, é incoerente. O que se advoga, portanto, é uma ética que enxerga o indivíduo no único local onde ele pode ser percebido: a sua própria existência.

Neste sentido, ouvir o próximo – suas dúvidas, temores, problemas e críticas – e, diante de suas crises, ser capaz de respeitá-lo como ser humano, não despejando sobre ele dogmas éticos construídos há tempos passados e assimilados sem qualquer reflexão, mas construindo junto com ele novas respostas éticas, é uma atitude de amor.

A ética não é um assunto meramente teórico. Pelo contrário, como o próprio autor afirma no início de seu livro, a ética é uma reflexão teórica sobre a prática moral. Sendo assim, é necessário que uma consciência ética, formada pela reflexão que é baseada no respeito e cuidado com o outro, atinja todas as áreas da vida humana, desde a religião, à economia, desde a política até as relações inter-pessoais que se tem dentro de casa. Quando isso ocorre, ou seja, quando a ética é aplicada sobre a realidade e utilizada como criticadora da normatividade, mudanças profundas acontecem. Uma ética desta natureza, por exemplo, quando aplicada às relações de gênero dentro da Igreja, desmascara a “impossibilidade da mulher assumir um ofício sacerdotal” como uma construção social estabelecida com um propósito específico, no caso, o de preservar uma posição de dominador para o homem dentro da comunidade de fé. Posição, aliás, frontalmente contrária ao ensino de Paulo de que, em Cristo, “não pode haver judeu nem grego; nem escravo, nem liberto; nem homem nem mulher” (Gl 3.28).

Entretanto, é preciso lembrar que construir uma proposta baseada na ética da responsabilidade não é tarefa fácil. Exige muito pensar, muita reflexão, muita oração, e muita transpiração para ser formulada. E, além disso, exige coragem de ser posta em prática. Num mundo cada vez mais individualista – alimentado pela ótica moderna do “Dá licença!”, como diz Rubem Amorese – propor reformas do gênero e grau como as que foram apresentadas pelos autores não é uma atitude bem-vinda. Resta, no entanto, a certeza de que calar-se, omitir-se, esconder-se (ou mesmo, vender-se, deixando-se seduzir pelos apelos modernos), não foi – e não é! – postura de quem afirma negar a si mesmo, tomar sua cruz e seguir a Cristo.
 

por: Marcio Simão de Vasconcellos

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