ÉTICA EM BONHOEFFER: CRISTO COMO FUNDAMENTO

08/11/2012 13:29

ÉTICA EM BONHOEFFER: CRISTO COMO FUNDAMENTO

 

BONHOEFFER, Dietrich. Ética. Tradução de Helberto Michel. 6a edição. Rio Grande do Sul: Sinodal, 2002. 218 p.

 

 

O livro Ética constitui uma excelente reflexão sobre qual motivação deve nortear o cristão em seu agir ético na vida, basendo-se, para isso, em considerações sobre o amor de Deus, realizado por e em Cristo. A abstração nos questionamentos éticos dá lugar, assim, à ações práticas tomadas na escolha diante de alternativas concretas. Em grande parte, isso se deve à própria vida do autor desta obra, Dietrich Bonhoeffer. Escritor e teólogo alemão, cujos livros apresentam profundas reflexões sobre diferentes assuntos, Bonhoeffer sofreu martírio nas mãos dos nazistas, durante a II Guerra Mundial; nesse sentido, é um exemplo do quão custoso pode ser assumir posicionamentos éticos baseados no Reino de Deus, na história. Esta afirmação, aliás, pode servir como critério para a leitura desse livro.

 

Bonhoeffer inicia seu texto apresentando a dicotomia em relação à decisões éticas como uma característica dos seres humanos. Esta dicotomia, resultante da cisão entre Deus e o homem, na Queda (cf. Gn 3), tornou o homem seu próprio criador e juiz. Perdendo o conhecimento a partir de Deus, o homem compreende-se como origem deste conhecimento, o que lhe faz enxergar a si mesmo e à sua desunião com Deus e com o próximo. Cheio de pudor e vergonha, o homem pós-queda busca religar-se com Deus (em sua etimologia mais correta, isto é religião) seja por meio do estabelecimento de morais ou da assunção de máscaras que disfarcem, para si e para os outros, sua situação diante Dele. Somente ao reconhecer esta cisão, mesmo em meios às máscaras e morais, o homem pode experimentar novamente a comunhão com o Criador. Assim, a vergonha e o pudor só podem desaparecer quando há humilhação que antecede o perdão do pecado. Já a consciência – “sinal da desunião do ser humano consigo mesmo” (p. 19) –  toma o lugar de Deus nos pensamentos e ações do indíviduo, estabelecendo normas de comportamento para o indíviduo e para seus relacionamentos.

 

Sendo assim, o ser humano, como árbitro de si mesmo, vive os conflitos éticos a partir de seu próprio conhecimento acerca do bem e do mal. Este homem é representando nos Evangelhos pela figura do fariseu, que, buscando servir a Deus (e, não há aqui, necessariamente, qualquer referência a uma hipocrisia neste servir), relaciona todos os conflitos possíveis, enxergando-os de todos os ângulos imagináveis, a fim de agir da maneira correta. Mas é justamente aí que o fariseu entra em conflito com Jesus. Ao catalogar todas as decisões (suas e, principalmente, dos outros), o fariseu se choca quando vê ausência de conflitos no agir e nos conselhos éticos de Jesus. Como diz Bonhoeffer, “Ele (Cristo) não quer ser invocado como árbitro em questões da vida” (p. 22); isto, aliás, é justamente o que nós procuramos fazer todo o tempo: “chamar” Jesus para o nosso lado da questão, contra nosso próximo. O ponto decisivo no procedimento de Jesus é que ele não se permite domesticar pela religião; pelo contrário, à alternativas farisaicas, Jesus sempre apresenta a vontade de Deus como a única maneira de recuperar a origem humana perdida no Éden. Esta afirmação sobre Jesus é claramente demonstrada em suas próprias palavras ao homem. Assim, contrariamente aos fariseus (cujas palavras e juízos sobre e contra o próximo sempre acentuam a cisão entre o bem e o mal no ser humano), Jesus leva o homem a um julgar “reconciliado” com Deus, com o outro e consigo mesmo. É interessante apontar aqui como uma compreensão bíblica sobre a graça de Deus está por detrás deste julgar cristão: quem já recebeu e conheceu a graça não a nega para o próximo (pois quem reconhece que foi perdoado, também perdoa), nem se oferece para ser seu juíz, pois o único Juíz já o absolveu (a si e ao próximo) por completo.

 

Este conhecimento da vontade de Deus expressa por Cristo, entretanto, não ocorre dissociado da reflexão e exame do cristão sobre as situações do cotidiano; antes, combina este pensar com o fato imprescindível de que se está em Cristo, isto é, une-se o intelecto e racionalidade humana com a presença de Jesus em nós. A partir daí, pode-se chegar à conclusão sobre qual ação deve ser tomada em determinada situação.

 

Duas últimas coisas são analisadas pelo autor neste capítulo: o fazer e o amor. O fazer do cristão reflete a prática da vontade de Deus, que só pode ser realizada, por sua vez, por meio de Cristo agindo em nós. Quem pratica a lei (vontade de Deus), não a usa como instrumento de julgamento contra o próximo, antes, dá ouvidos a ela e a cumpre, como resultado da religação gerada por Cristo entre Deus e o ser humano. Assim, qualquer saber que não resulte em fazer, é inútil e orgulhoso; e qualquer fazer que não surja por causa do ouvir a Palavra de Deus, é enganoso e destrutivo. Ouvir e fazer são ambas atitudes do cristão. Já o amor não pode ser definido por padrões e limites humanos; amor é Deus, em Cristo, reconciliando consigo o mundo perdido. Jesus Cristo, em suas ações e caráter, é a única definição de amor. Aliás, como diz Paulo, é por meio de Cristo que Deus prova o seu amor para conosco.

 

No segundo capítulo, Bonhoeffer relaciona a Igreja e o mundo, afirmando o retorno de temas diversos (razão, cultura, humanidade etc) ao seio da fé cristã, à sua origem em Cristo. Em Jesus, encontra-se o centro único do cristianismo e da vida; Nele, a exclusividade e a totalidade de seu Senhorio se revelam conjuntamente. Diante de Cristo, não existem duas categorias de pessoas, justas e pecadoras. O que há são pecadores, sendo que somente uns se reconhecem como tais.

 

Bonhoeffer analisa, no terceiro capítulo, a ética como formação, que provém de Cristo em quem o homem redimido se encontra. A sociedade experimenta e traz à tona inúmeras respostas éticas, desde o fanatismo ético até aquele que tem como guia sua própria consciência. Para Bonhoeffer, tais possibilidades são infrutíferas, pois somente na reconciliação promovida por Cristo em meio à história, é que se pode unir Deus e o mundo numa só visão. Por isso, é o amor de Deus, vivido em Jesus, que tem a capacidade de enfrentar a realidade e vencê-la. Em Cristo, o ser humano é redimido à sua posição correta: nem alvo de desprezo (como os evangélicos modernos que buscam viver uma fé sobre-humana, e, por conseguinte, contra o humano), nem objeto de adoração idólatra (que eleva o homem ao único padrão da verdade e sabedoria). O valor do homem é afirmado, antes e acima de tudo, porque Deus o amou primeiro. Assim, Jesus é o reconciliador do homem, que se torna aceito, julgado e já reconciliado com Deus por meio da cruz. Em Cristo, os valores e concepções do homem são transformados; sua crucificação e sua ressurreição afastam o medo da morte, juntamente com a maneira errônea de enxergar a vida que daí surge, e anunciam a nova humanidade, para a qual o “sim” de Deus já foi dito.

 

Conseqüentemente, a ética praticada pelo cristão não pode ser resultado de idéias humanas, mas sim da formação de Cristo nele, isto é, ser conformado com Jesus em sua encarnação, crucificação e ressurreição. O lugar onde esta formação se dá é na Igreja, o Corpo de Cristo, compreendida não como um organismo independente (como muitos líderes a enxergam hoje), mas como a “parte da humanidade em que Cristo tomou forma” (p. 51). É este Corpo de Cristo que serve como ponto de partida para a ética. Sendo assim, a ética cristã não pode ser atemporal, abstrata, ou meramente filosófica, mas sim, concreta, que passa a existir ao se enxergar o ser humano real e quando Cristo ganha forma em nosso mundo.

 

Na conclusão deste capítulo, o autor faz um breve retrospecto da história do cristianismo e sua herança, que, segundo ele, não pode ser negada. Bonhoeffer analisa cada uma destas etapas históricas até chegar ao secularismo de sua época por meio do qual o mundo foi “desdivinizado”. A razão humana aplicada à todas as áreas da vida (inclusive, as religiosas), o desenvolvimento tecnológico crescente, os movimentos de massa e o nacionalismo criado relacionam-se entre si, apesar de manterem suas contradições. Estas mudanças, provenientes da Reforma e da teologia católica, elevaram o homem à posição de deus, tornando o Ocidente hostil à Igreja. Esta é a raíz da crise enfrentada na modernidade; segundo o autor, para enfrentá-la, são necessários o milagre salvífico de Deus, que é anunciado na e pela Igreja, e o poder do Estado, usado por Deus ao impor a ordem. É decisivo também a fidelidade da Igreja à proclamação da mensagem cristã: Jesus Cristo ressuscitado. A Igreja torna-se o lugar onde os seres humanos que reconheceram sua culpa diante de Cristo, reúnem-se para afirmar a justificação desta culpa pela encarnação e ressurreição de Jesus, e por sua aceitação do homem. Esta culpa deve ser assumida em sua radical totalidade. Nesse sentido, é bom lembrar que o mais difícil não é abandonar nossas falhas de caráter, mas sim desistir de nossas virtudes como justiça própria; diante de Cristo, “não há quem busque o bem” (cf. Rm 3). Dessa forma, afirmar que Cristo levou sobre si não somente os pecados do mundo, mas também os da Igreja, é afirmar a identidade desta Igreja. Desta confissão depende a identidade cristã.

 

No capítulo quatro, Bonhoeffer trata da justificação e da relação existente entre o que chama de “últimas e penúltimas coisas”. A justificação do pecador pela graça e pela fé é a essência da fé cristã; é, além disso, a palavra derradeira, tanto em seu sentido cronológico como qualitativamente, pois surge da graça de Deus que não é suplantada por nenhuma outra palavra. Na qualidade de última palavra de Deus, a graça justificadora julga as penúltimas coisas, que, por sua vez, não devem ser compreendidas nem sob a forma radical (que colocam derradeiro e penúltimo em posições auto-excludentes), nem sob a solução de compromisso (que enfatiza as coisas penúltimas em detrimento do derradeiro). Para Bonhoeffer, ambas as posições, apesar de apresentarem elementos verdadeiros, pecam por sua radicalidade. Como ele diz, “vida cristã não é coisa de radicalismo nem de compromisso” (p. 75), pois compreende viver a vida por meio de Jesus, unindo numa só ótica a encarnação e a ressurreição de Cristo. A encarnação, a crucificação e a ressurreição são três ações de Deus em Cristo, assumindo a forma humana, julgando-a e dando-lhe nova vida. Assim, as coisas penúltimas, embora não devam ser absolutizadas em si mesmas, são alvo da preocupação do cristão, que enxerga as ações em favor dos oprimidos no mundo como uma preparação para o caminho da chegada da graça. Vive-se (e age-se) no penúltimo; espera-se (e completa-se) no derradeiro. Em outras palavras, Deus leva a sério as coisas criadas. Portanto, toda atitude supostamente cristã de retirar-se da vida pública, como se esta não lhe dissesse respeito, deturpa a mensagem do evangelho e impede o cumprimento da missão de Deus (missio Dei) expressa na proposta de Jesus: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio.”

 

Bonhoeffer também analisa o conceito do natural, que precisa ser recuperado à luz do evangelho. O direito natural, seja o próprio ou o alheio, deve ser respeitado, pois tal direito é estabelecido pelo próprio Deus. A partir dessa compreensão, Bonhoeffer relaciona as áreas do direito natural do indivíduo – com algumas de seus tópicos mais importantes: preservação, suicídio, aborto – a fim de elaborar uma resposta ética cristã para cada uma destas questões. Em todos estes pontos, o valor da vida humana é afirmado devido ao amor de Deus que o criou e que busca redimi-lo por meio de Jesus.

 

O capítulo cinco fala sobre a relação entre Cristo, a Igreja e o mundo. A ética cristã surge, não da pergunta acerca do que fazer para tornar-se bom, mas da pergunta sobre a vontade de Deus. A realidade que serve como pano-de-fundo para a reflexão ética não é o mundo em si, mas o mundo reconciliado com Deus em Cristo; trata-se, portanto, da realidade de Deus que deve manifestar-se como a realidade última. Sendo assim, qualquer bipolarização sobre o ser bom e o fazer boas ações deve ser rejeitada à luz da unidade proporcionada por Cristo-homem-Deus ao ser humano. Como diz Bonhoeffer, “em Jesus Cristo a realidade de Deus entrou na realidade deste mundo” (p. 110), e Nele, o ser humano é chamado para assumir como sua própria realidade, a realidade de Deus que é una. Dessa forma, a divisão sagrado-profano não tem sentido: não existem duas realidades antagônicas; existe apenas a realidade de Deus revelada em Cristo. O dualismo ético-religioso, que divide o humano em partes supostamente auto-excludentes (corpo versus alma, matéria versus espírito), precisa ser rejeitado. E a consequência de tal pensamento é a conscientização de que não é possível viver a fé cristã fora do mundo. A afirmação sobre o espaço da Igreja e o do mundo como sendo contrários entre si também não indica a existência dessa bipartição; o espaço da Igreja não se limita dentro de si mesmo, e o diabo ainda permanece um servo de Deus, embora rebelado. Todo o mundo é alvo do amor de Deus e, consequentemente, de sua reconciliação, revelada em Cristo e concretizada por meio de quatro mandatos de Deus: o trabalho, o matrimônio, a autoridade e a igreja.

 

No capítulo seis, Bonhoeffer analisa alguns conceitos que constituem uma ética cristã. Identificar o bem é uma tarefa inevitavelmente ligada à vida, isto é, à realidade histórica do ser humano que busca realizar esta identificação. Assim, compreender ética como a formulação de um bem que sirva de padrão absoluto para todas as questões de todos os seres humanos em todos os tempos é uma tarefa idealista, inútil e, por fim, irreal. A vida só pode ser compreendida a partir de Jesus, pois Ele é esta vida. Negligenciar este fato é deixar-se absorver por elaborações abstratas de uma ética que não tem nada a dizer ao homem concreto. Bonhoeffer apresenta uma estrutura da vida responsável, isto é, a vida que o homem leva em resposta à vida do próprio Cristo. Para construir seu argumento, o autor utiliza de alguns conceitos por ele delimitados: a representação (quando o homem age em lugar de outro); a conformidade com a realidade (ou seja, a compreensão de que o comportamento do homem não é um a-priori, mas sempre é construído pela e na sua história, enxergando o mundo como “a área de responsabilidade concreta que nos foi dada em e por Jesus Cristo” (p. 130)); a objetividade (a relação do responsável com o mundo das coisas); a assunção da culpa, da consciência (esta encontrando seu eixo não mais apenas em si mesmo, mas em Cristo que se torna o ponto de unidade da existência do cristão), e da liberdade (que se relaciona intimamente com a obediência).

 

A partir daí, Bonhoeffer define o lugar da responsabilidade da vida humana. O conceito usado por ele é profissão, compreendido aqui como a condição do homem quando chamado por Deus. Assim, o lugar da responsabilidade do cristão está definido pelo chamado de Cristo, e se expressa na área limitada dos trabalhos e relações pessoais, porém não se restringe à ela; antes, as fronteiras são expandidas em direção a Cristo e ao próximo. Nesse sentido, a responsabilidade do cristão vai bem além de sua área imediata de influência.

 

O capítulo sete busca compreender e definir o “ético”, questionando qual a base para seu discurso. Para Bonhoeffer, propostas éticas absolutas e universais não levam em consideração a existência humana histórica, onde todas as ações (e também a falta de ações) têm seu tempo próprio. Embora o ético como tema possa apresentar algum benefício à comunidade humana, o perigo é compreendê-lo como uma moralização que busca controlar todas as áreas da vida. A ética não é uma coleção de regulamentos (tipo faça e não faça) que abrangem todas as questões possíveis ao homem; a ética, na verdade, está ligada ao seu próprio tempo e lugar, pois só aí garante sua autorização concreta. Assim, o discurso ético está “condicionado a pessoas, épocas e lugares” (p. 150), e, necessariamente, apresenta-se de forma hierárquica. Isto não significa privilégios aos superiores em função da opressão dos inferiores, porém, mesmo assim, é uma realidade do discurso ético que deve ser considerada.

 

O discurso ético possui sua fundamentação nem por explicações positivistas, nem em construções de valores e ordens que delimitam as autoridades do governo, Igreja e paternidade de forma arbitrária. Segundo Bonhoeffer, o discurso ético só encontra sua autorização no mandamento de Deus, que não divide a realidade em duas: uma intemporal e universalmente válida, e a outra histórica e temporal. O mandamento de Deus é palavra concreta ao ser humano concreto, nunca é um discurso abstrato, e sua existência requer deste homem apenas a obediência ou desobediência em relação ao que Deus pede. Este mandamento é encontrado em forma histórica determinada, revelado em Jesus. Tendo Jesus como fonte da autoridade, as demais autoridades que receberam competência para anunciá-lo – Igreja, família, trabalho e governo – coexistem em complementação. Diferentemente de éticas legalistas e morais humanas, o mandamento de Deus é libertador, pois afirma a vida do ser humano na presença de Deus, permite que se possa ser humano diante de um Deus que de antemão já diz “eu não te condeno”. É interessante observar que, nesse sentido, o ético legalista lembra os meninos da parábola de Jesus que não riem ou dançam, nem choram, e, pior, não reconhecem, diante deles, o Deus da vida encarnado que ama e festeja a vida que criou (Cf. Mt 11.16-17).

 

Bonhoeffer também analisa a maneira como o mandamento de Deus se revela em quatro formas diferentes: Igreja, matrimônio e família, cultura e governo. Deste mandamento divino revelado em Cristo, dependem os mandatos divinos: ordens estruturadoras da realidade de Cristo. Eles estruturam-se numa clara ordem hierárquica, mas não a partir de uma compreensão terrena sobre o poder; em outras palavras, tanto o superior quanto o inferior estão debaixo da autoridade única do mesmo Deus. Além disso, os mandatos divinos da Igreja, do matrimônio e família, da cultura e do governo não são indepentes uns dos outros; antes, eles existem em “ação conjunta, recíproco apoio e confronto” (p. 160).

 

Na Igreja, o mandamento de Deus subsiste na pregação e na confissão. Uma não pode existir sem a outra, pois onde se enfatiza a confissão em detrimento da pregacão, corre-se o risco de instituir-se uma ética legalista; onde o contrário ocorre, corre-se o risco de perder a ética. A pregação, além disso, é de onde se origina a fé e o serviço da comunidade. Bonhoeffer deixa claro que não pode existir pregação na Igreja que não seja uma proclamação de Jesus Cristo, de seu senhorio, de sua cruz e de sua ressurreição. A eternidade de Cristo aponta para sua centralidade em toda a criação (tudo foi criado por Ele e para Ele); sua crucificação, para o juízo do mundo pecador, que não tem como voltar-se sozinho para Deus, e para os meios que o próprio Deus estabeleceu para este retorno; sua ressurreição, por sua vez, ressalta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. A pregação de Cristo indica a formação da comunidade de fé que vive por meio Dele. Pela Igreja, Cristo é proclamado ao mundo; a Igreja é, assim, um instrumento de Deus para o mundo.

 

O livro ainda conta com um apêndice com cinco breves capítulos, nos quais Bonhoeffer trata, respectivamente, de uma análise da doutrina luterana do primus usus legis, relacionando-a ao evangelho, apontando suas características, e tecendo algumas conclusões, como a possibilidade de cristãos e não-cristãos trabalharem juntos na “promoção de tarefas concretas” (p. 175); de uma crítica à ética formulada por Dilschneider, apontando, por exemplo, o erro em se compreender a libertação efetuada por Cristo como libertação do mundo das coisas (como um idealismo), e não do mundo do pecado; das diferenças e relações entre o Estado e a Igreja; do modo pelo qual a Igreja pode falar ao mundo; e de sobre o que significa dizer a verdade.

 

Não é tarefa fácil escolher, dentre os inúmeros assuntos abordados por Bonhoeffer, aspectos que possam ser apontados como mais importantes ou fundamentais. Isso porque cada argumentação apresentada pelo autor gera novas reflexões, cada uma das quais valiosa por si mesmo. A riqueza da argumentação se faz acompanhar de uma linguagem extremamente clara e, do mesmo modo como sua ética, proposta no livro, concreta. Aliás, qualquer abstração, diante das situações vividas por Bonhoeffer frente ao nazismo, seria inútil; sua ética é a que leva a um agir responsável diante da vida e do único Deus que a governa e a redime em Cristo.

 

Ainda assim, vale ressaltar: o centro da ética cristã é Jesus Cristo. A partir Dele – sua encarnação, morte e ressurreição – é que se pode pensar eticamente acerca do mundo. Nesse sentido, é necessário perceber que a própria Bíblia pode se tornar numa arma contra o próximo, caso não seja lida a partir de Jesus, e sim a partir de si mesma. Afirmar, por exemplo, a unicidade de Jesus a partir de proibições ao outro (“nós lho proibimos porque não seguia conosco” Mc 9.31), ou por meio do fogo que cai do céu para consumi-lo (Lc 9.51) não é tão incomum quanto se pensa. Sendo assim, a ética cristã, muitas vezes, repete o comportamento e discurso da fariseu diante do publicano, negando ser parte do mundo “pecador”. Entretanto, ao fazer isso, perde-se de vista a essência da mensagem do evangelho: é este mundo o alvo do amor e da graça redentora de Cristo. É preciso lembrar que, em se tratando do ser humano, está-se lidando com terra santa, na qual deve-se tirar as sandálias presunçosas do pré-julgamento.

 

Por: Marcio Simão de Vasconcellos

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