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RELIGIÃO E SOCIEDADE: DIALÉTICA DA MODERNIDADE
RELIGIÃO E SOCIEDADE: DIALÉTICA DA MODERNIDADE
BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução de José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulus, 1985. 195 p.
Dossel Sagrado é uma análise, feita com maestria e profundidade, das complexas relações existentes entre a religião e a sociedade. Escrito por Peter L Berger, professor de Sociologia na Faculdade da New School for Social Research, editor da revista Social Research da mesma faculdade, e autor de diversas obras, o livro é elaborado com uma linguagem clara, o que, nem por isso, torna-o simplório. Ao contrário, pode ser considerado obra fundamental para a elaboração de uma Sociologia da Religião.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte (que corresponde aos cinco capítulos iniciais), Berger analisa os elementos sistemáticos de sua argumentação. O capítulo 1 aborda a construção da sociedade humana e do papel fundamental que a religião possui nesse processo. É o ser humano que cria a sociedade, porém, ao mesmo tempo, é dela dependente. Esta relação se dá através de três momentos: a exteriorização, a objetivação e a interiorização. A exteriorização diz respeito à ação do homem sobre o mundo que o cerca, fruto da própria biologia humana. Por não possuir o determinismo instintivo dos demais animais, o mundo do homem é “aberto” (p. 18), isto é, passível de ser transformado pela ação humana. Trata-se da formação da cultura, elemento indispensável e inevitável da vida do homem. Contudo, esta criação humana – a sociedade e suas estruturas – torna-se, pelo processo da objetivação, algo exterior e “superior” ao próprio homem, no sentido de que passa a existir fora da subjetividade do indivíduo. Aspectos materiais e imateriais da cultura (como a linguagem, por exemplo) assumem papéis dominadores na sociedade que, embora construída pelo homem, torna-se quem “dita as regras”. Tais objetos culturais podem ser compartilhados com os outros, sendo por todos reconhecidos como verdadeiros. É esta capacidade de se impor como realidade para o ser humano que eleva determinada construção humana ao nível de fenômeno social. Mesmo assim, vale ressaltar: todas as instituições sociais são de fabricação humana, e não sobrevivem em si mesmas; são resultado da produção do homem, e não a-históricas.
A interiorização, por sua vez, é a parte do processo pelo qual o homem se apropria do nomos (lei, ordem) construído e vive os papéis sociais que nele lhe são destinados. Esta atividade de transformar a facticidade objetiva do mundo social em uma facticidade subjetiva é contínua, isto é, é gerada pelos relacionamentos e conversações que um indivíduo mantém com outros que lhe sejam significativos. Este processo se dá sempre de forma dialética. Em outras palavras, o homem não é formado pela sociedade como se fosse um mero objeto; antes, é participante ativo do processo. Dessa forma, o ser humano nunca deixa de ser co-produtor de seu próprio mundo. Também é importante perceber que é esta interiorização do nomos o que produz sentido para a vida – até mesmo o próprio passado, aliás, é reinterpretado à luz desse nomos – e que qualquer anomia constitui uma séria ameaça ao indivíduo. Nesse sentido, o nomos socialmente construído pelo homem serve como escudo contra o terror de perder o sentido. Por isso, existem procedimentos impostos pela sociedade no sentido de reafirmar os valores propostos pelo nomos estabelecido. Entretanto, existe uma tendência apontada por Berger: a de naturalizar-se as estruturas humanas socialmente construídas. E é aqui que a religião cumpre um papel fundamental, a saber: o de sacralizar o nomos garantindo a ausência da anomia.
No capítulo 2, Berger apresenta a religião em sua função de mantenedora do mundo construído. O primeiro mecanismo para manter a realidade social são as legitimações (isto é, as explicações e justificativas para a ordem social), através das quais reforça-se o nomos e justifica-se quaisquer ações com o intuito de preservá-lo. Para Berger, “a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação” (p. 45). Isso ocorre porque a religião justifica a realidade com argumentos advindos de uma realidade suprema, a qual não se deseja (e não se pode!) contrariar. Através desse processo, nega-se a historicidade da realidade social. Em outras palavras, as coisas são como são porque foram estabelecidas antes mesmo da história, por uma força ou divindade superior à qual é melhor obedecer. Dessa forma, além de retirar o foco da construção histórica de determinado nomos, pode-se afirmar que quaisquer atos para preservá-lo intocável recebe uma pré-aprovação eterna; em outras palavras, o nomos é elevado à categoria de transcendente e a-histórico, superior ao próprio homem que o construiu. Nas palavras de Berger, “a legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada” (p. 48). Sendo assim, qualquer crítica ou ação contra o nomos instituído representa, para o crítico, uma qualificação de agente das trevas, do caos anômico que destrói a sociedade legitimada religiosamente. E é justamente aqui, aliás, que reside a semente para os processos inquisitoriais, tanto do passado quanto do presente. Esta manutenção do mundo garantida pela religião é também resultado dos rituais religiosos através dos quais relembra-se como e por que as coisas são como são.
No capítulo 3, o autor trata da questão das teodicéias, isto é, das explicações para o sofrimento e o mal nas sociedades a partir de uma ótica religiosa. Graças à teodicéia, pode-se garantir que o sofrimento não é inútil nem desesperador; antes, cumpre um papel importante na sociedade. A teodicéia, portanto, produz significado na dor, na morte e no sofrimento. Este sentido que guarda o nomos mesmo em meio à anomia é fundamentalmente importante para o ser humano. Assim, se for preciso enfrentar a morte, isto será feito com a certeza de que se está cumprindo um papel necessário no mundo. Berger apresenta alguns tipos de teodicéia, relacionando-as numa linha entre a racionalidade e a irracionalidade. No pólo irracional, por exemplo, ele cita a transcendência simples do eu, pela qual o indivíduo se identifica completamente com a sociedade. No outro extremo, da racionalidade, está o complexo jarma-sansara, proveniente do pensamento religioso indiano; e entre as duas, Berger cita uma variedade de teodicéias.
O capítulo 4 apresenta a alienação que pode ser produzida pela religião. A alienação é o processo pelo qual o homem deixa de perceber que é participante ativo na construção de seu próprio mundo. Em outras palavras, sua consciência não é mais dialética, tornando-se uma “falsa consciência” (p. 97). A alienação impede que haja críticas ao mundo humano, porque não mais se enxerga este como elaboração do próprio homem. Para Berger, a religião possui um papel importante neste processo de alienação. Isto ocorre porque o encontro com o Totalmente Outro (para usar uma expressão de Rudolf Otto) produz uma compreensão de que a realidade já está dada, ou seja, repousa num a-priori divino. As explicações do mundo retiram da equação a participação humana em sua elaboração; antes, são as forças cósmicas, ou o Destino, ou Deus quem estabeleceu o mundo dessa maneira. Se é assim, então, tal mundo não pode ser questionado; deve ser aceito como realidade última, imposta pela divindade.
Na segunda parte de seu livro – correspondente aos capítulos quinto ao sétimo – Berger usa toda sua argumentação até esse ponto como instrumental de análise de alguns fatores sócio-culturais específicos.
No capítulo 5, Berger trata do processo de secularização. Após relatar de forma breve a história da expressão secularização, Berger busca analisar sua origem. O protestantismo, num certo sentido, retirou o mistério do culto. Não há mais grandes aparatos sacramentais; a liturgia do culto assume ares mais racionalistas. Além disso, o crente protestante está “sozinho no mundo”: ao ser separado da Igreja católica, e tendo a si mesmo como único sacerdote necessário numa relação com Deus, ele perdeu o contato com seu próprio grupo. Sendo assim, por todos esses fatores, o protestantismo pode ser apontado como gerador do processo de secularização. Para Berger, contudo, este processo de “desencantamento do mundo” não se iniciou com o protestantismo, mas surgiu já no Antigo Testamento. Israel, ao ser formado como povo, rompeu com a estrutura de universo proposta pelas nações vizinhas. De uma relação direta com a divindade (características das nações da Síria e da Palestina), Israel rompeu com a unidade cósmica, uma vez que sua teologia postula uma Deus transcendente, isto é, um Deus que está fora do cosmos. O relacionamento deste Deus com Israel se deu na história, sendo imune a manipulações mágicas. Assim, se Deus se relaciona com Israel na história, é nela que as ações dos israelistas serão avaliadas. Isto representa uma “considerável individuação na concepção do homem” (p. 131), pois ele surge como um ator histórico. Este processo de secularização, em maior ou menor grau (e até com alguns retrocessos em determinados períodos históricos e áreas específicas da sociedade), também se fez presente na história da igreja cristã. O cristianismo latino do Ocidente, por exemplo, manteve sua visão historicista do mundo. Por todas essas razões, Berger afirma que a origem do fenômeno da secularização “deve ser buscada, pelo menos em parte, nas raízes de sua tradição religiosa” (p. 137).
No capítulo 6, Berger analisa uma das conseqüências produzidas pela secularização: a crise da plausibilidade no discurso religioso. Ironicamente, a origem do processo surgiu dentro do próprio cristianismo: suas confissões e argumentações originadas da tradição bíblica podem ser apontadas como uma das causas formadoras da sociedade moderna secularizada. Este processo de secularização, que se iniciou na área econômica, logo se espalhou para as demais áreas da sociedade, tornando a religião uma experiência polarizada – viva e atuante dentro de casa (Família), porém distante e ignorada pelo setor econômico da sociedade e, também, pelo próprio Estado, que, por sua vez, não pode mais ordenar determinada instituição religiosa como dominante. Sendo assim, a religião não pode mais desempenhar sua tarefa clássica: “construir um mundo comum no âmbito do qual toda a vida social recebe um significado último que obriga a todos” (p. 145). Antes, limita-se ao ambiente que lhe foi poupado: o privado. Por meio da secularização, a voz da religião perde espaço na formação da mentalidade do ser humano. Perde sua capacidade de ordenadora do mundo. O sagrado, portanto, é posto de lado e só lembrado quando é útil à alguma área da vida.
Uma outra conseqüência da secularização é a pluralização, isto é, o fim do monopólio das tradições religiosas em troca da possibilidade de escolha, o que afeta radicalmente os diferentes grupos religiosos, os quais passam a sobreviver sob a ótica do mercado. É preciso, portanto, saber ofertar o melhor produto a fim de ganhar a simpatia e o apoio do cliente. Contudo, tal apoio não é mais submisso; antes, precisa ser cuidadosamente conquistado, momento a momento, por meio de novas e melhores ofertas e produtos. Berger realiza uma excelente análise (e, ao mesmo tempo, assustadora) sobre o impacto que a pluralização produz sobre a religião: os resultados mercadológicos tornam-se o foco dos grupos religiosos; a burocracia aumenta nas instituições religiosas; passa a existir uma necessidade exponencial de capital a fim de realizar novos investimentos no mercado (aliás, como a fonte de renda destes grupos é incerta, isto é, depende da voluntariedade de seus colaboradores, é cada vez mais constante o uso de argumentações sócio-teológicas espúrias que garantam uma renda fixa); a preferência do consumidor religioso é o que dita as novas regras para a eclesiologia e até mesmo para o pensar teológico; enfim, a secularização e a pluralização dela decorrente têm transformado de maneira radical a religião ocidental moderna. Diante disso, segundo Berger, as instituições religiosas podem adequar-se às demandas da modernidade secularista, ou fechar-se em si mesmas a fim de tentar manter o mundo secularizado do lado de fora. Ambas as possibilidades possuem riscos e dificuldades.
É disso, aliás, de que trata o sétimo e último capítulo do livro. Berger analisa a crise da teologia que caracteriza a situação religiosa contemporânea. Para tanto, o autor apresenta um breve retrospecto histórico do cristianismo – considerado como o ensaio geral do declínio da religião – retornando ao protestantismo dos reformadores e da ortodoxia protestante, analisando o pietismo e o racionalismo iluminista (ambos produzindo crises na ortodoxia protestante), a neo-ortodoxia de Karl Barth (que reafirmou a objetividade da tradição e a exterioridade da mensagem cristã), a teologia de Bultmann, a de Paul Tillich, e, por fim, o neoliberalismo.
Dossel Sagrado traz à tona assuntos essenciais à compreensão da dialética existente entre a religião e a sociedade moderna. Talvez, um primeiro aspecto que vale a pena ser ressaltado sobre o livro seja justamente sua chave de leitura: reconhecer que a Igreja não existe num vácuo social. Na verdade, ela só pode servir à sua função quando existe em e para a sociedade que a cerca. Não é possível anunciar as virtudes do Senhor que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (I Pe 1.9), sem que a linguagem na qual esta mensagem será expressa seja assimilada e compreendida. E linguagem, neste caso, não significa apenas a verbalização do que se pensa, mas toda uma cosmovisão de mundo que engloba modos de pensar, agir e ser diversos.
Talvez o maior impacto da secularização da modernidade sobre a Igreja tenha se dado justamente no âmbito de sua administração eclesiástico-financeira. Tanto a secularização quanto a pluralização atuam em conjunto na modificação do auto-entendimento da estruturação eclesiológica. A secularização, por exemplo, “dessacralizou” elementos litúrgicos e religiosos, alterando até mesmo o modo como se enxerga Deus. Sob esta ótica, Deus é aquele que não mais dita as ordens para o ser humano, já que este, tendo se reconhecido como responsável por si próprio e por sua história, vê o mundo como adulto, onde Deus é desnecessário. O homem expulsou Deus do paraíso terrestre!
Quando se alia, à secularização e seus efeitos, a pluralização, – compreensão segundo a qual existem infinitas possibilidades de escolha, cujo valor é medido pelo retorno imediato que elas proporcionam ao indivíduo – a Igreja torna-se mais uma opção no mercado religioso, precisando, por isso, de novos mecanismos para sobreviver. E a questão que pode ser levantada aqui é: levando-se em conta as inúmeras escolhas que o consumidor religioso tem diante de si, como proclamar a mensagem do Evangelho? A mentalidade moderna aplicada à Igreja ensina: reduza a mensagem ao mínimo e a enfeite de todo benefício para o ouvinte, a fim de que este possa ouvir você ou, pelo menos, lhe dar o benefício da dúvida. O evangelho transforma-se, sob esta ótica, numa mercadoria maleável de acordo com as preferências dos consumidores. Busca-se não a verdade e integridade da mensagem, mas unicamente os benefícios que ela porventura possa trazer.
Um dos pontos principais do livro é a clareza com que Berger desmascara quaisquer tentativas de se elevar a um nível a-histórico construções sociais humanas. É importante considerar este fato pois a teologia cristã (especialmente, a sistemática) é marcadamente influenciada por esse tipo de discurso. Tendo como ponto de partida a metafísica da filosofia grega, produz-se um modo específico – um único caminho – para se construir argumentos teológicos. Assim, a verdade não se encontra na multiplicidade de discursos, mas na autoridade cósmica que é evocada para enfatizar a validade do discurso. Como diz Berger, “os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico” (p. 49). Sendo assim, o discurso teológico não surge localmente, mas é imposto, atemporalmente, sobre quaisquer realidades. Este único caminho se traduz numa maneira unívoca de dizer as coisas, que, por sua vez, revela modos de ser e de fazer que se refletem diretamente na eclesiologia e nas práticas litúrgicas e disciplinares das comunidades cristãs. Trata-se do controle do discurso, que julga toda voz alheia como herética. É bom lembrar que devolver à história o discurso teológico é a única maneira de fazê-lo inteligível à mente moderna. Recusar-se a fazer isso é negar a pluralidade da fé do povo, esmagando sua experiência pessoal com o Sagrado. Além disso, elevar uma mediação cultural específica a um nível de atemporalidade, significa necessariamente ignorar toda e qualquer mediação cultural diferente. Quando isso ocorre, o discurso sistematizado é supervalorizado; a experiência de fé local deixa de ter sua importância; e a mensagem do evangelho não pode mais ser transmitida ou compreendida pelo outro. E além de tudo, qualquer pensamento diferente e questionador é encarado como anormalidade subversiva de quem está a serviço do reino das trevas. O diferente desafia a ortodoxia. E a conseqüência é o exercício de formas de controle que buscam impedir o surgimento de vozes distoantes ou questionadoras nas comunidades de fé.
Na verdade, as estruturas religiosas são por vezes sustentadas por um “status ontológico de validade suprema” (p. 46), isto é, não apenas não podem ser questionadas, como também não devem ser. Fazê-lo significaria se levantar contra a Divindade que, afirma-se, legitima aquela estrutura. O próprio Deus teria estabelecido as coisas como elas são. Busca-se, com isso, camuflar construções históricas com o apelo do sobrenatural; naturalizam-se estruturas sociais com afirmações que as ligam diretamente com o início dos tempos.
Nesse sentido, criticar tais estruturas é sinônimo de criticar a “realidade última”, estabelecida desde o princípio pelo próprio Deus. Ainda nas palavras de Berger, “ir contra a ordem da sociedade como é legitimada religiosamente é, todavia, aliar-se às forças primevas da escuridão” (p. 52). Para os que ousarem realizar essa crítica, existem inúmeros mecanismos de controle social que procuram “conter as resistências individuais ou de grupo dentro de limites toleráveis” (p. 42).
Esta tentativa de pensar a respeito das dogmatizações teológicas, fechadas em si mesmas, constitui uma tarefa árdua, porém intensamente necessária. Não render-se aos sistemas fechados de pensamento, elaborados em épocas inteiramente distintas, nem deixar de enxergar as construções históricas (elaboradas em um tempo determinado) é algo que precisa ser feito. Pensar dói profundamente. E criticar normas totalitárias gera conseqüências difíceis de serem suportadas. Entretanto, a verdade do evangelho é libertadora e, de modo algum deixa de respeitar o outro como alguém dono do seu próprio discurso. Nesse sentido, o livro de Berger é fundamental.
Marcio Simão de Vasconcellos